quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Capítulo 12: A perspectiva moderna do trauma esplénico

No trauma fechado, ou contuso, a lesão esplénica é a mais frequente dos órgãos sólidos abdominais. Não se prenderá, a razão, com a exposição do órgão mas, talvez, com a sua fragilidade. A mortalidade associada ao trauma do baço é baixa (1 a 3%) e, a maioria das vezes relacionada com lesões concomitantes de outras localizações (sobretudo o TCE).

Nos últimos anos muito pouco se tem avançado no diagnóstico e tratamento da lesão esplénica. Na verdade, há pouco a dizer de novo sobre este assunto. Após a introdução do tratamento conservador, raros são os baços operados, para infelicidade dos internos de especialidade. Contudo, mantém-se 2 indicações cirúrgicas major: a presença de instabilidade hemodinâmica e a coexistência de sinais de peritonite.

A primeira série publicada versando sobre o tratamento conservador foi do Toronto's Hospital for sick children, em 1968. Rapidamente o paradigma mudou para as crianças, justificando-se com as diferenças anatómicas entre o baço destes doentes e dos doentes adultos e, sobretudo, por nas crianças o baço ser mais consistente e com uma cápsula mais dura, resistindo melhor ao trauma ou às suas complicações. Apesar disso, o tratamento conservador (NOM - non-operative management) foi tentado no adulto e com sucesso reprodutível. Uma revisão multi-institucional da EAST (Eastern Association for the surgery of trauma) identificou em 2011 uma taxa de NOM de 77% nos EUA. O paradigma foi mudando ao longo dos anos 90, com inicio no final da década de 80 do século passado.

Uma revisão de 5 anos efectuada no Serviço de Cirurgia 1 do CHTV, entre 2004 e 2009, identificou 50% de doentes tratados conservadoramente com uma taxa de sucesso de 76%.

Porquê NOM? Porque operar os doentes é perigoso. Evitar as complicações operatórias pode justificar a utilização de uma outra metodologia, desde que segura. Além da mortalidade operatória inerente a qualquer intervenção e a possibilidade de hemorragia pós-operatória, os doentes submetidos a esplenectomia podem sofrer episódios de tromboembolismo venoso, trombocitose e OPSI (overwhelming post operatory sepsis), esta última com uma mortalidade elevadíssima.
O NOM falha em 4 a 38% dos casos e em 90% falha nos primeiros 4 dias.

A opção por NOM tem de ser programada. Não pode ser tomada de ânimo leve. É obrigatório o cumprimento das seguintes premissas:
- Doente com estabilidade hemodinâmica
- Possível a classificação por TC
- Ausência de indicação cirúrgica por outro motivo
- Necessidade de produtos transfusionais inferior 2 UCE
- Hospital com capacidade cirúrgica e de monitorização

A questão da estabilidade hemodinâmica é pertinente. Muito frequentemente usamos essa expressão na prática clinica, mas nem sempre da forma adequada. O Professor Michael Sugrue, que muitos de vós conhecerão de nome ou dos congressos, costuma dizer que "in Ireland, stable is the place where we put the horses..." ilustrando bem como a expressão se tornou habitual no léxico médico e de forma pouco rigorosa.
A objectivação da estabilidade hemodinâmica pode ser conseguida através da utilização de scores. A WTA (Western Trauma Association) utiliza um score que me parece simples e facilmente reprodutível:

Grade 0: No significant hypotension (systolic blood pressure < 90 mm Hg) or serious tachycardia (heart rate > 130 beats/minute)

Grade 1: Hypotension or tachycardia by report but not reported in the emergency department

Grade 2: Hypotension or tachycardia responsive to initial volume loading with no ongoing fluid or pRBC requirement

Grade 3: Hypotension or tachycardia responsive to initial volume loads with modest ongoing fluid (<250 mL/hr) or pRBC transfusion

Grade 4: Hypotension or tachycardia only responsive to more than 2 liters of volume loading and the need for vigorous ongoing fluid infusion (>250 mL/hr) and pRBC transfusion

Grade 5: Hypotension unresponsive to fluid and pRBC transfusion

Moore FA, Davis JW, Moore Jr. EE, Cocanour CS et al
Western Trauma Association (WTA) Critical Decisions in Trauma: Management of Adult Blunt Splenic Trauma, JTrauma 65:1007 2008

A instabilidade define-se, neste score, como o doente que apresenta os graus 4 ou 5.

A severidade da lesão é importante e é fácil aceitar que a falência do NOM está relacionada com o grau de lesão. Tem sido utilizada um classificação guiada por TC. Esta é baseada numa classificação anatómica antiga (Moore et al.) e que não tem correspondência directa com as imagens da TC. Contudo, será bastante aproximada e tem sido utilizada como sendo equivalente e até foi incorporada na classificação ISS.



Moore EE, Cogbill TH, Malangoni M, Jurkovich GJ, Champion HR
Scaling system for organ specific injuries
http://www.aast.org/Library/TraumaTools/InjuryScoringScales.aspx#spleen

A correspondência da taxa de falência do NOM com o grau de lesão é directa: 5% para o grau I; 10% para grau II; 20% para grau III; 33% para grau IV e 75% para grau V.

Para alguns autores, o volume de hemoperitoneu, medido em ecografia ou TC, é um factor a ter em consideração na decisão de iniciar NOM. Assim como a presença de algumas alterações de natureza vascular, na TC. A presença de extravasamento de contraste, blush arterial ou fistula arteriovenosa pode pesar contra o NOM. Isto significa que é obrigatória a caracterização das lesões por TC à entrada.

Alguns outros factores que poderão ser considerados contra-indicação para NOM são a idade avançada (qual? não há consenso), a presença concomitante de lesão traumática intra-craniana, um ISS (Injury Severity Score) superior a 25 e necessidades transfusionais mantidas (após 5 UCE ou 2 UCE?).

Um aspecto importante é o da monitorização. Um Hospital onde se pretende fazer NOM tem de ter essa capacidade. A literatura é unânime em considerar necessária a monitorização continua dos sinais vitais durante 3 dias, com avaliação da Hemoglobina de 6/6 horas. A repetição da TC às 48 horas pode justificar-se pelos 6% de lesões que surgem tardiamente. 

A profilaxia do tromboembolismo venoso é obrigatório, sendo instituído NOM ou não. Ressalvando as respectivas contra-indicações, claro.

Outra questão pertinente é a da retoma da actividade física. Ninguém sabe como proceder. Existem recomendações, mas não pode dizer-se que são baseadas em dados concretos, pois não existem estudos. Porém, arriscaria sugerir o seguinte esquema:

Grau I-II:
Evitar esforços físicos e desporto 6 semanas
Evitar trabalho pesado 6 a 8 semanas
Iniciar actividades domésticas após 2 semanas
Grau ≥III :
Actividade mínima 1 semana
Actividade ligeira 4 a 8 semanas;
Evitar esforços físicos e desporto 6 semanas
Evitar trabalho pesado 10 a 12 semanas
Grau IV, V:
Evitar esforços físicos e desporto 3 meses

A angioembolização assume no NOM um papel importante, podendo ser um adjuvante na redução da falência do tratamento médico, sobretudo em circunstâncias especificas. É o caso das lesões grau IV e V, dos doentes com hemoperitoneu moderado (e como definir isto?) e na presença das anomalias vasculares anteriormente descritas, identificadas na TC. Alguns algoritmos incluem a angioembolização como passo antes da cirurgia e, por vezes, em sua substituição. No entanto, a angioembolização também pode falhar (em 5 a 9% dos casos) e não é isenta de complicações (19 a 28%) que podem reduzir-se se se optar por embolizações mais distais. O abcesso esplénico, o enfarte esplénico extenso, o derrame pleural, a lesão vascular no local do acesso e a hemorragia recorrente são algumas das complicações possíveis, as mais frequentes. Não obstante, a angiografia pode elevar o sucesso do NOM até aos 97%...
Não se conhece o efeito, ou melhor, o prejuízo imunológico produzido pela angioembolização, pelo que se recomenda vacinar de igual forma aos doentes operados.
É interessante notar que alguns autores acreditam que no traumatismo esplénico isolado, a angiografia pode substituir a cirurgia, mesmo em doentes hemodinamicamente instáveis. Para desmistificar a questão relacionada com o tempo (mais rapidamente se opera...), Olthof et al. comparou o intervalo de tempo entre a entrada do doente e a chegada à suite de angio versus Bloco operatório e não verificou diferenças de relevo. Aliás, as diferenças existentes favoreciam a angiografia. Temos de convir que se trata de realidades muito dispares das nossas. 

Até há pouco tempo, nos anos 1990, esteve muito em voga a chamada cirurgia conservadora de baço. A esplenorrafia, a esplenectomia parcial e a utilização de redes ainda surgem nos manuais cirúrgicos e mesmo nos de cirurgia de trauma. Quanto a mim, esta questão está ultrapassada e essas técnicas devem ser remetidas em exclusivo para a cirurgia de rotina. É que  as cirurgias conservadoras de baço eram efectuadas em doentes que hoje não são operados, são tratados conservadoramente.

Quanto à laparoscopia?
Segundo a SAGES, são consideradas indicações para a laparoscopia no trauma, no doente hemodinamicamente estável:
- Lesão abdominal suspeita (fechada ou penetrante)
- Trauma Abdominal penetrante com arma branca com penetração da cavidade duvidosa ou estabelecida
- Trauma Abdominal penetrante com arma de fogo com trajecto intra-peritoneal duvidoso
- Lesão diafragmática por trauma penetrante
E são consideradas contra-indicações:
- Instabilidade hemodinâmica
- Indicação para laparotomia (peritonite, choque, evisceração)
- Lesão abdominal óbvia ou conhecida
- Limitada aptidão laparoscópica
Portanto, doentes estáveis com trauma abdominal fechado podem ser submetidos a laparoscopia diagnóstica para excluir lesões relevantes. No entanto, alguns autores pretendem ir um pouco mais longe, apesar da escassez de dados clínicos que o suportem. Poderá ser um aspecto a desenvolver no futuro.






S. Sauerland, F. Agresta,  R. Bergamaschi,  G. Borzellino,  et al
Laparoscopy for abdominal emergencies
Evidence-based guidelines of the European Association for Endoscopic Surgery
SurgEndosc 20: 14, 2006

Assim, actualmente o tratamento standard é o NOM. Há um papel óbvio para a angiografia com melhoria aparente dos resultados. Porém, restam dúvidas sobre aspectos básicos da nossa conduta, como sejam a intensidade e duração da monitorização e a intensidade e duração da restrição da actividade física. Tendo em conta a actuação presente e as tendências actuais, deverá ser difícil realizar estudos que nos mostrem o que fazer e modificar as atitudes que hoje tomamos.


terça-feira, 2 de agosto de 2016

Capítulo 11: Hematoma espontâneo

Em 2013 fui convidado para falar sobre este tema em Lyon, no Congresso da ESTES. Achei um disparate haver uma keynote lecture sobre um tema tão obscuro. E raro, achava eu. Mas aceitei o desafio. E o que descobri foi, deveras, surpreendente. Não só não é assim tão raro, como o seu manuseamento não é fácil, nem consensual. Havendo tantas possibilidades relacionadas com hematomas espontâneos, optei por me cingir a uma área mais ligada à Cirurgia Geral, o hematoma espontâneo abdominal extra-peritoneal.

A primeira coisa que descobri é que raras vezes ele é verdadeiramente espontâneo. Se procurarmos bem, quase sempre conseguimos encontrar uma causa predisponente. Nestes casos, excluem-se sempre os de origem traumática. Os factores de risco mais frequentemente associados são: idade avançada, hipertensão, doença cardíaca, aterosclerose, doença renal, gravidez e discrasias sanguíneas. Infelizmente, nos dias de hoje, começam a surgir outros factores de risco, importantes pela gravidade dos hematomas a eles associados. Refiro-me à utilização de anticoagulantes orais, antiagregantes plaquetares e heparina, não fraccionada e de baixo peso molecular.
Além destes factores, ditos de risco, existem factores precipitantes. Estes podem ser definidos como um esforço físico de grandeza variada, mas passível de produzir disrupção vascular e hemorragia. São exemplos a tosse, o espirro ou uma outra contracção muscular vigorosa. E sim, o sexo também.
Os verdadeiramente espontâneos seriam aqueles em que nenhum destes factores, de risco ou precipitantes, fosse identificado. Isso acontece em cerca de 8% dos casos, o que, como compreendem, é pouco habitual. E o facto de não se ter encontrado, não quer dizer que não exista, certo?

Não se sabe bem porquê nem como, mas a hemorragia é multifocal. Vários factores foram apontados para este achado, mas a contribuição individual de cada um é desconhecida. Diversos autores referem a existência de arteriosclerose difusa de pequenos vasos, microangiopatia (esta associada ao uso de heparina), vasculopatia oculta e desconhecida e trauma minor não reconhecido.

O hematoma extra-peritoneal pode surgir na bainha dos músculos rectos do abdómen (o mais frequente) ou no retroperitoneu, quer em estruturas musculares (músculo psoas) ou não (glândula supra-renal). O quadro clínico caracteriza-se por dor e distensão, podendo mesmo identificar-se uma massa abdominal. A presença de equimose superficial é, sempre, um sinal tardio.
A melhor ajuda para chegar ao diagnóstico desta situação é ter tido experiência prévia de um caso. Raramente sem pensa nesta possibilidade e, habitualmente, gasta-se uma bateria de exames para excluir múltiplas outras situações mórbidas, sendo o diagnóstico final um achado imagiológico. Por isso, o diagnóstico diferencial é muito extenso... Inclui basicamente tudo o que pode cursar com dor abdominal.
A ecografia e a TC são os exames que mais ajudam. O primeiro no despiste e o segundo na caracterização. Infelizmente, a TC nem sempre é realizada com esta suspeita e os tempos relativamente à administração de contraste podem não ser as melhores para uma boa caracterização da lesão e, sobretudo, da hemorragia presente. Este é um dos aspectos mais importantes e que pode ser determinante na escolha do tratamento mais adequado. A presença de hemorragia activa ou de sinais de potencial de hemorragia continuada são fundamentais.

O tratamento inicial é conservador. Isto significa internamento, repouso no leito, gelo local, analgesia, reversão da anticoagulação caso exista, transfusão se necessário e monitorização. Em cerca de 80% dos casos não é necessário mais do que isso. Porém, esta atitude associa-se com internamento prolongado, em média, 20 dias. 
Existem 5 circunstâncias que obrigam a uma atitude diferente:
- A presença de instabilidade hemodinâmica
- A presença de dor incapacitante não controlável
- A necessidade continuada de produtos de transfusão
- A presença de uma síndrome de compartimento e
- O desenvolvimento de infecção

Na presença de sinais de instabilidade hemodinâmica, motivada pela hemorragia continuada de um volume sanguíneo significativo, podemos optar por cirurgia ou angiografia. A velha discussão sobre quem tem angiografia e/ou não, é importante, mas fora do âmbito deste texto. Quem  não tem angiografia, tem de operar. A cirurgia consiste na evacuação do hematoma e na sutura e laqueação dos vasos sangrantes (vasos... plural). Os poucos estudos que existem sobre angioembolização apontam para uma taxa de sucesso próxima dos 100%, com uma mortalidade de 0%. Porém, são poucos e não há estudos comparativos com a cirurgia. De acrescentar que todos eles referem a necessidade de TC prévia para guiar a superselectividade do procedimento, caso contrário a morbilidade pode ser demasiado elevada (necrose muscular extensa). Não são, no entanto, de desprezar as vantagens óbvias sobre a cirurgia: a invasibilidade mínima e a taxa elevada de sucesso (98%).

O tratamento da dor não controlável é cirúrgico - evacuar e laquear. A dor mantida é usualmente causada pelo aumento progressivo, gradual e lento, da pressão dentro do hematoma por hemorragia continuada de baixo débito. Há algumas descrições de aspiração percutânea, mas associada a um elevado risco de infecção e de evacuação incompleta, pelo que não deve ser utilizada.

Em caso de necessidade continuada de produtos de transfusão, deve realizar-se uma angioTC. Se existe blush arterial, o tratamento de escolha é a angioembolização. Caso não exista, o tratamento deverá ser a evacuação cirúrgica e a laqueação dos vasos sangrantes.

A síndrome de compartimento pode manifestar-se de 3 formas distintas, dependendo do compartimento envolvido. Em caso de síndrome de compartimento abdominal, o tratamento é a laparostomia, acabando por se evacuar e laquear, à semelhança do que já foi referido. A síndrome compartimental pode, também, manifestar-se como défice neurológico. A opção por descompressão cirúrgica precoce leva a melhores resultados funcionais e a uma recuperação mais rápida. No entanto, há autores que defendem o tratamento conservador por medo das complicações da cirurgia. Esta opção leva a uma recuperação tardia e, habitualmente, incompleta. Por fim, o défice vascular, manifestado nos membros inferiores, necessita de descompressão cirúrgica precoce e, muitas vezes, fasciotomia. 

A infecção é, na maioria dos casos, iatrogénica. Muitas vezes é difícil resistir puncionar estas colecções e este é o preço a pagar. E pode ser um preço muito elevado. O desenvolvimento de um abcesso necessita de um desbridamento amplo, tratamento sistémico com antibióticos de largo espectro e "rezar" para que não se desenvolva uma fasceíte que pode culminar na morte do doente.

Em Conclusão
Trata-se de uma entidade rara mas com uma frequência crescente, paralela ao crescimento da utilização de fármacos com efeito na coagulação e na trombose. É de muito difícil diagnóstico, sendo habitualmente identificada imagiologicamente quando se procura outra causa para os sintomas. A abordagem destes doentes deve ser multidisciplinar (está na moda) e iniciar-se pelo tratamento conservador e avançar para tratamentos mais invasivos nos casos indicados.
















sábado, 16 de julho de 2016

Capítulo 10: Trauma - Parte I: Cuidados integrados em trauma

Como em muitas outras situações na vida, tendemos a copiar uns dos outros as coisas que funcionam bem. E, como em muitas outras situações na vida, nós "tugas", tendemos a fazê-lo demasiado tarde. Em relação ao trauma temos décadas em atraso.

Durante muitos anos foi tudo ao molho em fé em Deus. Ainda me lembro desses tempos. Cada vez que entrava o que podia ser um traumatizado grave no Serviço de Urgência, todo o pessoal caía sobre o doente e eu, jovem interno do primeiro ano, tinha que nadar através de um mar de gente só para conseguir fazer uma gasimetria... Depois apareceu o ATLS. E, de repente pareceu que a grande preocupação de todos era o trauma. Vários tipos de formação pós-graduada ligadas ao trauma surgiram como cogumelos em todo o lado... Não posso afirmar que tudo foi mau, porque não é verdade. A tomada de consciência para o trauma despertou um gosto especial pelo tratamento do doente crítico em todos os profissionais ligados à saúde, levando a uma evolução nos cuidados críticos e na forma como abordamos esses doentes que se sente até hoje. Nessa onda surgiram conceitos de controlo de dano, resuscitação hemostática, cirurgia fisiológica... mas, não é esse o tema que me traz aqui hoje.

Os cuidados integrados em trauma são um conceito muito antigo. A primeira pessoa a pensar nisso como sendo uma necessidade para melhoria de cuidados foi, provavelmente, Jean Dominique Larrey. Este membro da aristocracia francesa do século XIX, cirurgião do Imperador Napoleão, inventou a ambulância e os Hospitais de campanha, reduzindo em mais de um terço a mortalidade dos combatentes franceses que participaram nas invasões napoleónicas.

O conceito essencial quando se fala em cuidado integrados é o de Rede de Trauma. A Rede de Trauma pode ser definida como uma resposta planeada e coordenada ao doente vitima de trauma capaz de providenciar tratamento standard e adequado em tempo útil, independentemente do local em que a vitima seja observada. Este conceito é originário de países em que a incidência do trauma é elevada, sobretudo do trauma penetrante, mas é útil para países em que a incidência é baixa, produzindo um estado de alerta permanente e mantendo o sistema preparado para actuar. Uma Rede de Trauma adequada integra múltiplos elementos, desde o atendimento no local até à re-integração da vitima na sociedade. E é esta integração dos elementos em rede que permite, não só melhorar os cuidados, mas também evitar a duplicação de recursos e maximizar a utilização dos recursos existentes. Parecendo uma questão perfeitamente lapalissiana, a realidade é, no entanto, bem distinta. Tem havido várias tentativas de produzir, ou reproduzir uma espécie de Sistema de Trauma no nosso país. Porém, tem havido dificuldades. Desde 2010 que a Direcção Geral de Saúde tornou obrigatória a criação de uma Via Verde de Trauma nos Hospitais, através da publicação de um Norma em março/2010, para cumprimento até ao fim de 2011. Estamos em 2016 e conheço poucos hospitais onde foi implementada.
O Sistema de Trauma deve incluir normas e regras relativas à abordagem pré-hospitalar e hospitalar, mas também à prevenção e reabilitação. E é fundamental, que possua um mecanismo de auto-avaliação.
O Sistema de Trauma adequado deve ser inclusivo. Isto significa que tem de providenciar cuidados de qualidade a todos os doentes, independentemente da sua gravidade, mas também utilizar todos os recursos disponíveis de todos os hospitais da região, evitando assim o "afogamento" dos grandes centros com casos minor. O que importa é que cada doente receba o tratamento adequado à gravidade das suas lesões. O objectivo de um sistema inclusivo é, portanto, equiparar os recursos de cada hospital com as necessidades de cada doente aí transportado. Para tal é necessário uma sistema de triagem que deverá iniciar-se desde a abordagem pré-hospitalar, com apoio médico, de forma a decidir para onde o doente é referenciado. Esta metodologia permite que as vitimas mais graves sejam sempre atendidas num centro de cuidados mais diferenciados, que serão apenas 5 a 10% dos casos, mas que consomem mais recursos. E poupa-se tempo.
O sistema integrado, com todas as suas componentes, é capaz de reduzir o número de acidentes, através de manobras preventivas eficazes e reduzir a morbilidade, reduzir os tempos de internamento, reduzir os custos das incapacidades e produzir uma recuperação mais rápida, através de uma melhor qualidade de cuidados.
Todos os aspectos aludidos são importantes. A maioria das vezes que pensamos em trauma, pensamos na sua elevada mortalidade, sobretudo em doentes jovens, em idade activa. Mas não devemos esquecer que por cada doente que morre, há 3 que ficam permanentemente incapacitados e, por isso, os encargos pessoais, familiares e sociais envolvidos são avultados. O trauma é, também, uma causa major de absentismo laboral.
No nosso país, a principal causa de trauma grave é a sinistralidade rodoviária. Depois, as quedas, sobretudo numa população mais idosa. E os números, apesar de terem melhorado gradualmente ao longo dos últimos anos, continuam assustadores. Há 20 anos, o trauma era responsável por cerca de 850 mortes por ano, de um total de 350.000 "acidentes". Já em 2009 morreram 1039 pessoas (a população também cresceu...) só em acidentes de viação. Ainda há muito a fazer do ponto de vista preventivo.
Por isso, o primeiro aspecto a ter em consideração é a prevenção. A prevenção em trauma é um pouco descurada pelas autoridades e mesmo pelos profissionais de saúde. Quem tem preocupações mais atentas sobre esta questão são os engenheiros: os que fazem as estradas, os que fazem as pontes, os que constroem os carros e as motas... Há 4 tipos de prevenção: a primária, cujo objectivo é evitar que aconteça o evento (a obrigatoriedade da carta de condução é um exemplo); a secundária, cujo objectivo é minimizar os efeitos após o evento ter acontecido (cinto de segurança, airbag, rails...), a terciária, cujo objectivo é evitar as complicações do evento (hospitais, ATLS...) e, por fim, a quaternária que permite impedir que o evento se repita (tratamento de reabilitação anti-alcoólica). Estes aspectos são estudados de forma exaustiva por vários tipos de cientistas que depois criaram uma espécie de grelha de integração dos diversos aspectos a que deram o nome de Haddon Matrix, que é auto explicativa:

How to Write an Action Plan. 
Published byDoris Howard; http://slideplayer.com/slide/7058591/
Daqui resultam os quatro E's da estratégia preventiva: Education (mais uma vez a carta de condução), Enforcement (multas, etc.), Engineering (construtoras) e Economics (como em tudo).
O aspecto seguinte é a abordagem pré-hospitalar. E voltamos a falar novamente no Jean Dominique Larrey. De facto, o conceito que ele implementou nos campos de batalha traduz muito bem o que deve ser o serviço pré-hospitalar hoje: acesso rápido ao local, atendimento e transporte para cuidados definitivos. Quem deve estar envolvido neste serviço depende muito da disponibilidade dos recursos humanos e das características geográficas locais. É compreensível que numa cidade como Nova Yorque, a utilização de médicos na rua não é exequível, mas na nossa realidade é e funciona muito bem. O tipo de atendimento local (scoop & run vs stay & play) depende da avaliação efectuada e do tipo de situação presente. Actualmente dá-se preferência ao scoop and run, mas nem todas as situações se adequarão a esse método. O local para onde a vitima vai deve ser o centro mais próximo e mais adequado. Tive o cuidado de não escrever Hospital mas centro, o que ficará explicado em seguida. A abordagem pré-hospitalar deve ter, obrigatoriamente, controlo médico, seja directo, por protocolos ou por outro meio que se entenda eficaz. E deve ter algum tipo de controlo de qualidade e auditoria regular. Só dessa forma podemos perceber o que fazemos e se estamos a fazê-lo bem. Não vou tecer comentários sobre recursos materiais e meios de transporte em cuidados pré-hospitalares por entender não ser esse o objectivo deste texto. Mas não posso deixar de referir a questão da triagem. Num sistema de trauma inclusivo, a triagem é fundamental. É na triagem que se baseia, em grande medida, o sucesso do sistema, permitindo algum grau de sobretriagem, evitando o mal maior que é a subtriagem. É preferível que um doente ligeiro seja abordado inicialmente num centro de elevada diferenciação do que um grave num centro não diferenciado e necessitar de uma transferência secundária. A triagem mais utilizada no mundo baseia-se em critérios fisiológicos, anatómicos, lesionais e de comorbilidades, tentando calcular a gravidade da vitima de forma a poder classificá-la e com resultado desse cálculo, seleccionar o local de abordagem inicial. Trata-se de um sistema de avaliação progressivo, que, permitindo alguma subjectividade, envia o doente para o nível de cuidados superior sempre que haja dúvidas e assim, evita a subtriagem. Ou redu-la o mais possível. 
http://www.scrtac.org/SCRTAC_Transport_Guidelines.html
O Centro de Trauma é um hospital/centro de atendimento dentro do sistema, equipado para lidar com doentes vitimas de trauma múltiplo e definido de acordo com a sua localização estratégica e acessibilidade, o tipo de recursos disponíveis, incluindo a diferenciação técnica e cientifica dos seus profissionais, e pela casuística. É obrigatória a sua adesão a standards e normas de boa prática clinica e administrativa, bem como a uma constante avaliação do seu funcionamento como Centro de Trauma. Os diferentes pontos da rede, os Centros de Trauma, deverão estar, idealmente, a menos de 30 minutos de qualquer local de ocorrência na sua área. Em alternativa, o serviço pré-hospitalar deverá acorrer a esse local no mesmo tempo. Já a distância entre dois pontos da rede deverá ser no máximo de 2 horas.
Os Centros de Trauma são classificados de acordo com as suas capacidades em: Nível 1. centro que dispõe de todas as valências, deverá receber mais de 250 doentes com ISS superior a 15 por ano;
Nível 2. centro com capacidade cirúrgica (Cirurgia Geral e Ortopedia), devendo existir protocolos entre estes e os de nível 1 para as transferências necessárias e Nível 3. centros de atendimento básico.
Introduzem-se, aqui, dois conceitos novos: o de ISS e o de nível de atendimento. ISS refere-se ao Injury Severity Score que, embora com algumas falhas em termos de classificação lesional, é o score mais usado para uniformizar critérios e avaliar os Centros de Trauma quanto à sua capacidade de execução e casuística. Já os níveis de atendimento referem-se a real capacidade do centro dentro do sistema. Os recursos serão distribuídos com base nesta classificação. Assim, os centros de nível 3, os mais básicos, poderiam, na nossa realidade, ser Centros de Saúde apetrechados com sala de recepção de agudos. A equipe mínima é constituída por um médico, um enfermeiro e um auxiliar. Os centros de nível 2 poderão ser representados por Hospitais com capacidade cirúrgica, não centrais. Aqui, a equipe já deve incluir um Cirurgião, Intensivista, um Anestesista e um Ortopedista, além do mínimo já aludido. Os centros de nível 3, o mais elevado, os clássicos Hospitais Centrais ou Universitários, dispõe de 2 equipes, uma executiva, que tem de incluir obrigatoriamente os já referidos anteriormente acrescido de um Neurocirurgião, um Imagiologista e um 2º enfermeiro. A equipe consultiva é constituída por todo e qualquer profissional que possa ser necessário durante o tratamento e gestão do doente vitima de trauma (Cirurgia Plástica, Cirurgia  Maxilo-facial, Cirurgia, Vascular, Gastroenterologia, Pneumologia, Medicina Física e Reabilitação, Psiquiatria, Cirurgia Cardio-torácica, etc.). A equipe deve primar pelo rigor e conhecimento cientifico, ser diligente no tratamento dos seus doentes e ser capaz de funcionar como uma equipe coesa. O Team Leader, peça fundamental neste jogo, tem de ter a noção de que o trabalho é de risco e tem de ser capaz de tomar decisões difíceis e rapidamente. Tem de ser um médico experiente, disponível e com uma bagagem cientifica apropriada. Na minha opinião, esta figura central tem de ser um Cirurgião. O conhecimento sobre a fisiologia do doente e da fisiopatologia do trauma faz do Cirurgião Geral a pessoa ideal para coordenar uma equipa tão díspar de elementos, muitos deles afastados dos meandros da urgência e por isso pouco conhecedores das alterações agudas próprias deste tipo de vitimas. Sem conhecer essas alterações e suas consequências para o prognóstico, é impossível tomar decisões de forma adequada. É fundamental que esta equipe conheça, e idealmente tenha formação, em suporte avançado de vida em trauma.

A integração da sala de atendimento ao trauma dentro de cada centro é dependente dos recursos disponíveis. Actualmente fala-se muito nas salas híbridas, com capacidade de atendimento primário, cirurgia e até imagiologia. A sala de atendimento ao trauma, ou sala de emergência, ou sala de reanimação, ou sala zero (muitas designações ao longo deste país tão pequeno) serve para conduzir a recepção, a reanimação e optimização do doente, permitindo a sua transferência para o local onde serão providenciados os cuidados definitivos de forma segura. É mandatória a existência de linhas de orientação de funcionalidade com áreas ou entidades afins, no sentido de maximizar a eficácia, a qualidade e a rapidez de atendimento:
- com o pré-hospitalar: INEM, Bombeiros, etc.
- com a orientação inter-hospitalar: equipas de diferentes hospitais, CODU, etc.
- com a equipe de trabalho hospitalar: imagiologia, bloco, laboratório, cuidados intensivos, etc.


  
Por fim, a reabilitação. O objectivo final deste empreendimento não deve ser, em exclusivo, manter o doente vivo. Isso não é suficiente. Devemos pugnar por devolver o indivíduo vitima de trauma plenamente apto para o regresso à vida em sociedade. Viver e ser produtivo. Muitas vezes, para familiares e próximos, a sobrevida é a principal preocupação. Para a sociedade em geral isso não chega. Os encargos com doentes incapacitados é elevado e custa a todos nós. Se for possível recuperá-los, torná-los úteis de novo, esse deve ser o objectivo. Evidentemente que esse objectivo deve ser cumprido de forma progressiva, passo a passo. Mas deve estar no horizonte desde o primeiro dia. A recuperação do doente pode ser dividida em 3 processos distintos: a recuperação anatómica, com auxilio da cirurgia nas suas diversas vertentes, a funcional, com apoio dos centros de reabilitação física e também a psicológica, em programas de apoio psiquiátrico e psicológico. O apoio psiquiátrico assume um papel importante, quer do ponto de vista preventivo, na recuperação dos doentes alcoólicos, por exemplo, quer terapêutico, já que muitos destes doentes vêem a sofrer de psicopatologia, alguns na forma de síndrome de stress pós-trauma, que os incapacita para o resto das suas vidas.

Haverá, com certeza, inúmeros aspectos ligados ao trauma e aos cuidados integrados que não foram aqui referidos. É um tema vasto e em constante evolução. Em Portugal a sua aplicabilidade está dependente de factores ligados à gestão e à administração, difíceis de ultrapassar apesar dos esforços realizados por muitos profissionais de saúde empenhados na mudança. O trauma, felizmente, não é uma epidemia no nosso país e temos lidado com as situações com qualidade. Mas há lugar para melhorar. E é para as situações menos frequentes que é mais necessário haver protocolos de actuação, para que quando surjam, nada falhe...

segunda-feira, 11 de julho de 2016

sábado, 9 de julho de 2016

Capitulo 9: Hemorragia digestiva alta

A Hemorragia Digestiva Alta é uma causa comum de recurso ao Serviço de Urgência. É responsável por um custo anual superior a 750 milhões de dólares (nos EUA) com uma prevalência à volta de 170 casos por 100.000 habitantes. A sua mortalidade tem-se mantido estável nos últimos anos, apesar do aparecimento de novos métodos tecnológicos para o seu diagnóstico e tratamento, entre 6 e 8%, de acordo com as diferentes séries. Acima dos 60 anos, a mortalidade é superior a 20%.

Por definição, a HDA é aquela que tem origem proximalmente ao ângulo de Treitz, ou seja, no esófago, no estômago ou no duodeno. As principais causas são a doença péptica (55%) e as varizes esofágicas (15%). As restantes etiologias, menos frequentes (cerca de 5%) distribuem-se entre as malformações arterio-venosas, a síndrome de Mallory-Weiss, a lesão de Dieulafoy, tumores, entre outros.

A HDA apresenta-se, habitualmente, com hematemeses, melenas ou choque. Apesar de puderem apresentar-se de forma algo espectacular, 80% resolvem de forma espontânea. Apenas 20% necessitam de algum método de tratamento para a sua resolução, endoscopia, angiografia ou cirurgia. Em 90% dos casos em que se utiliza a endoscopia, ela será bem sucedida. Dois porcento necessitaram de uma intervenção cirúrgica emergente.

O esófago é origem da hemorragia em 19 a 25% dos casos. As causas esofágicas mais comuns são as varizes, a erosão mucosa e a síndrome de Mallory-Weiss.
As varizes são características do doente cirrótico com hipertensão portal. Podem surgir em casos de cirrose compensada (30%) e descompensada (60%). São responsáveis por 90% das HDA nos doentes com cirrose, mas não são causa exclusiva. A mortalidade é elevada e a HDA por varizes é um factor de mau prognóstico vital na evolução da cirrose. A sobrevida a um ano é de 60%, aos 5 anos de 34% e aos 10 anos de 14%. Sete ponto quatro porcento dos doentes com HDA por varizes esofágicas morre nas primeiras 48 horas e 23,5% no internamento subsequente.
A erosão mucosa esofágica é habitualmente causada por ingestão de produtos cáusticos, a maioria das vezes medicamentos. São exemplos comprimidos de ferro, tetraciclinas, cloreto de potássio, antibióticos, alendronato, AINE, entre outros. Por este motivo, aconselha-se a toma de qualquer medicação em posição erecta e com muita água. Exemplos de outras causas são os corpos estranhos, sobretudo as sondas gástricas e o refluxo gastro-esofágico.
A síndrome de Mallory-Weiss é uma entidade descrita por estes autores em 1929 e que consiste na laceração mucosa a nível da junção esofago-gástrica induzida pelo vómito. Associa-se ao alcoolismo, à hérnia hiatal, à toma de AINEs, hipertensão portal, entre outros factores.

O estômago é origem da hemorragia em 21% dos casos. A principal causa é a doença péptica, mas também pode ter origem na gastrite erosiva, na lesão de Dieulafoy, cancro, gastropatia hipertensiva, etc.
Os AINE são causa de 50% das hemorragias de origem ulcerosa. Actuam por contacto directo mas, fundamentalmente, por inibição da síntese de prostaglandinas que são factores protectores da mucosa gástrica. A doença péptica sofreu uma revolução com a descoberta do Helicobacter pylori, descrito por Marshall em 1984. Inicialmente desconhecia-se a sua acção, mas rapidamente se percebeu que se tratava de um patógeno presente em 90% dos doentes que desenvolvem uma complicação ulcerosa. É reconhecidamente causa de cancro e linfoma gástricos. A erradicação do HP levou a uma redução significativa da prevalência da doença ulcerosa no mundo mas, curiosamente, a prevalência da complicação hemorrágica, e também da perfuração, não diminuiu. Isto evoca a possibilidade de uma origem diferente para estes tipos de complicação, contudo, não existem dados que o expliquem de forma segura.
A gastropatia erosiva é uma complicação grave que surge em doentes críticos, sendo considerada uma forma de disfunção orgânica, com uma mortalidade superior a 40%. A sua origem é multifactorial para a qual concorrem a má perfusão tecidular, a medicação vasoactiva e a ventilação com pressão positiva.
A lesão conhecida pelo nome de Dieulafoy desde 1908, terá sido descrita pela primeira vez por Gallard em 1884. É uma lesão de natureza vascular, localizada à submucosa e próxima do cárdia. É rara, constituindo menos de 1% de todas as HDA. Além do erro na sua denominação, actualmente, muitos autores atribuem este nome a outras lesões do mesmo tipo encontradas em outras localizações do tubo digestivo. Uma designação de natureza anatómica ou anatomo-patológica seria mais lógica e mais correcta.
A hipertensão portal pode causar hemorragia gástrica de formas distintas. Uma delas é através de varizes gástricas, por hipertensão portal sinistra ou envolvendo os ramos da veia esplénica. É rara. Outra, mais comum, é a gastropatia hipertensiva, responsável por 2 a 3% das HDA no doente cirrótico.

O duodeno é origem da hemorragia em cerca de 23% das vezes. A causa mais comum é, indiscutivelmente, a doença ulcerosa de natureza péptica. Mas há outras causas.
A forma mais frequente de doença péptica é atribuível a uma ulcera de localização ao bulbo ou pós-bulbar, na parede posterior. Na sua evolução e destruição da parede, a ulcera acaba por erodir a artéria gastro-duodenal e provocar uma hemorragia aguda com repercussão sistémica importante.
Uma causa rara, mas curiosa, é a fistula aorto-entérica. Surge em doentes com cirurgia aórtica prévia, habitualmente por aneurisma, com estabelecimento de uma fistula entre anastomose vascular proximal e o duodeno. Habitualmente localiza-se à 3ª ou 4ª porções do duodeno, pelo que a endoscopia digestiva realizada inicialmente pode não identificar o local de hemorragia. A história é muito típica, com episódios de hemorragia e choque não identificados pela endoscopia, dos quais o doente recupera. A hipotensão permite a formação de coágulo no trajecto fistuloso parando temporariamente a hemorragia. À medida que a tensão arterial sobe, o coágulo é desalojado e reinicia a hemorragia. Este ciclo pode acontecer várias vezes antes de se reconhecer a causa. Existe um tipo de fistula aorto-entérica primária, sem cirurgia arterial prévia, de localização semelhante mas cuja fisiopatologia é desconhecida. Há poucos casos descritos na literatura e pode associar-se à existência de aneurisma não tratado.

Apesar dos meios diagnósticos actualmente disponíveis, 8 a 12% das HDA ficam por localizar. E apesar do local hemorrágico, os procedimentos básicos de tratamento são sempre os mesmos:
1)Estabilização hemodinâmica
2)Localização da fonte hemorrágica e
3)Terapêutica dirigida
A endoscopia digestiva alta tem um papel muito importante no diagnóstico e no controlo da hemorragia na maioria das situações. A identificação do local é, também, imprescindível aquando da necessidade de cirurgia. Não sendo uma situação de trauma, não deixa de ser uma situação potencial de hemorragia massiva pelo que a instituição de uma resuscitação de tipo controlo de dano pode estar indicada, activando o PTM.
Os único fármacos que têm demonstrado ser úteis no controlo da hemorragia e da sua recorrência são os inibidores da bomba de protões e devem ser utilizados desde o inicio. A lavagem gástrica poderá ajudar. Reduz o volume de sangue no estômago permitindo uma melhor visualização. Porém, a lavagem com soro frio produz hipotermia que pode agravar a hemorragia. Deve usar-se de forma judiciosa.
A endoscopia é o pilar principal do tratamento. Existem diversas metodologias hemostáticas disponíveis, com recurso a clips, adrenalina, electrocautério, etc. A endoscopia consegue controlar mais de 90% dos casos. A falha do tratamento endoscópico dita a indicação cirúrgica.
Relativamente à hemorragia por úlcera péptica, existem vários scores que podem ajudar na tomada de decisão. A classificação de Forrest define o risco de re-sangramento associado às características macroscópicas da ulcera e dos sinais de hemorragia. O score de Rockall é um índice de prognóstico relacionado com variáveis do doente, da hemorragia e da apresentação clinica.
A grande questão é sempre a da necessidade de cirurgia. A diferença entre operar um doente atempadamente ou em choque hipovolémico pode ser a diferença entre a sobrevida e a mortalidade. Poder prever a necessidade de cirurgia antes de um evento catastrófico pode salvar a vida do doente. A cirurgia da HDA comporta uma morbilidade e mortalidade que devem ser avaliadas e tomadas em conta aquando da decisão. Não existem propriamente regras que possam ser usadas de forma linear. Há que equacionar todas as variáveis e decidir.
Se após tentar o tratamento endoscópico este é incapaz de controlar a hemorragia, a decisão de operar parece-me óbvia. Se a hemorragia parou, mas existem estigmas de elevado risco de resangramento, o doente poderá ser vigiado de perto e repetir a endoscopia, ou ser preparado para um cirurgia semi-electiva ou urgência diferida. A maioria das vezes, estes doentes são admitidos em unidades de cuidados intermédios/intensivos e vigiados. Serão operados em caso de recorrência. Se a hemorragia parou e os estigmas são de baixo risco, em principio não há razão para operar estes doentes. Deverão ser posteriormente tratados com erradicação do Helicobacter.

A cirurgia na HDA deve ser expedita. Em 2 sentidos: na decisão - nem demasiado tarde nem demasiado cedo, e na técnica - nem muito pouco nem muito muito... O objectivo é resolver o problema com a solução cirúrgica mais simples, que muitas vezes é um sutura hemostática. Não há lugar para cirurgias de ressecção ou "definitivas".
A angiografia pode ter papel importante em casos especiais, nomeadamente na hemobilia, nos tumores... mas é preciso que esteja disponível.

Alguns factores estão associados com um prognóstico mais desfavorável:
Hemoglobina inferior a 7
ASA 4
Idade superior a 80 anos
Lesão renal aguda
Recorrência hemorrágica
Falência do tratamento endoscópico

Conclusão:
- A maioria das HDA não serão tratadas pelo cirurgião
- A maioria das HDA em que o cirurgião é envolvido não serão para operar
- A resuscitação é um aspecto importante
- Quando for necessário operar, é preciso fazê-lo a tempo
- Quando for necessário operar, é preciso fazê-lo de forma simples e eficaz

terça-feira, 5 de julho de 2016

Capítulo 8: Abdomen Agudo

O Abdómen Agudo é sempre um motivo de discussão acesa entre cirurgiões, sobretudo na presença de internos e, mais ainda, de jovens internos. Cada cirurgião "maduro" tem a sua opinião bem formada sobre este assunto. E todos acham que a sua definição é a correcta.

O primeiro clínico a preocupar-se com este tema terá sido Sir Zachary Cope, cirurgião Inglês que praticou medicina no inicio do século XX (1881-1974) e foi autor do mais conhecido livro sobre abdómen agudo: Cope's Early Diagnosis of the Acute Abdomen, que foi editado com várias versões desde 1921 até 1974, pelo próprio. Este trabalho permanece um texto standard e respeitado por todos cirurgiões gerais e continua a ter edições recentes, tendo a última sido publicada em 2010. Citações do trabalho original surgem sempre que se fala de AA.

By Speaight Ltd. ([1]) [CC BY 4.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0)], via Wikimedia Commons


As primeiras definições de AA estavam ligadas à necessidade de cirurgia urgente, habitualmente nas primeiras 24 horas. Numa época de escassos recursos diagnósticos, quer laboratoriais quer imagiológicos, as decisões cirúrgicas eram tomadas com base na clínica. Por isso, muitos doentes operados com base na presença de sinais de irritação peritoneal, não seriam operados hoje por conseguirmos identificar patologias que não tem indicação cirúrgica inicial, como, por exemplo, a pancreatite aguda. Portanto, a definição actual não pode ser baseada na existência de indicação operatória.

O facto é que conseguimos diagnosticar um AA sem recorrer a exames complementares de relevo. A maioria das vezes necessitamos apenas da nossa observação. Por esse motivo, alguns autores referem-se a AA sempre que há sinais clínicos sem um diagnóstico definido. Pessoalmente, acho que um diagnóstico de AA não deve depender da nossa capacidade em chegar ao um diagnóstico etiológico e, por isso, mesmo sabendo que o doente tem uma apendicite aguda, ele continua a ter um AA. 
Neste contexto, o conceito que melhor se enquadra é o que define AA como uma síndrome clinica, caracterizada por dor abdominal de instalação recente (habitualmente horas mas pode ter a duração de alguns dias), associado a sinais de irritação peritoneal e algum rebate sistémico (desde a febre até à sépsis).

O AA constitui a urgência cirúrgica mais frequente, estimando-se que mais de 50% dos doentes admitidos e operados pelo SU o sejam por AA. A mortalidade intra-hopsitalar desta entidade não é desprezível, podendo chegar aos 4%, mais elevada nos grupos etários mais velhos. Nos tempos actuais, uma das questões mais importantes a responder perante um AA é referente à necessidade de cirurgia. Não operar um doente que necessita é mau, mas operar um doente que não necessita não é melhor... os riscos são elevados, a morbilidade importante e a mortalidade não justificável. 

O AA constitui um espectro continuo de manifestações clinicas que vai desde o doente que se apresenta com uma dor abdominal ligeira, estado geral conservado, uma palpação dolorosa mas tolerável e ruídos peristálticos normais, até ao doente séptico, com dor abdominal intensa, "ventre em madeira" (clássico), distensão abdominal e ausência de ruídos. A Escola Médica de Coimbra apresentava uma classificação de AA (Ventre Agudo, Prof. Fernando José de Oliveira) muito particular: 
- AA flegmásico - onde predominam os sinais de irritação peritoneal (apendicite, colecistite, etc.)
- AA oclusivo - onde predominam os sinais de oclusão intestinal
- AA apopletiforme - onde predomina a dor (pancreatite aguda, isquémia mesentérica, etc.)
- AA hemorrágico - onde predominam sinais de hipovolémia (trauma, gravidez ectópica, etc.)

A localização da dor também nos pode orientar no diagnóstico etiológico, não sendo, no entanto, muito rigoroso:
- QSD: colecistite, perfuração ulcerosa, pancreatite, pneumonia...
- QSE: rotura esplénica, isquémia cardíaca...
- QID: apendicite, patologia ginecológica, Crohn...
- QIE: diverticulite, colite isquémica, patologia ginecológica...
- Difusa: oclusão intestinal, isquémia mesentérica...
Há nesta lista patologia não abdominal porque existe patologia extra-abdominal que pode ter uma apresentação clínica de AA. Sendo uma síndrome clinica, não podemos falar em falso AA, mas apenas em apresentações atípicas das doenças extra-abdominais.

A avaliação de um doente com AA, além da clínica, implica um estudo diagnóstico que inclui exames laboratoriais e de imagem. Genericamente, aos estudos laboratoriais mais gerais deverão acrescentar-se a Amilase e Lipase, o Teste de Gravidez, a enzimologia cardíaca por vezes o doseamento de algumas drogas. Na presença de sépsis ou instabilidade hemodinâmica a gasimetria é obrigatória. São imprescindíveis a radiografia do tórax e do abdómen. Muitos autores na actualidade exibem opiniões em oposição à realização da radiografia do abdómen argumentando a sua inutilidade. Não podendo argumentar em favor da sua utilidade do ponto de vista geral, penso que em situações pontuais a radiografia do abdómen pode ser importante na tomada de decisão quer cirúrgica, quer na persecução diagnóstica, razão pela qual continuo a inclui-lo no arsenal diagnóstico do AA. A ecografia abdominal é, hoje, uma mais valia em diversas situações clinicas que cursam com AA, podendo ser, mesmo, o único exame de imagem necessário para o diagnóstico. É exemplo a colecistite aguda. Não obstante, múltiplos outros exames servem o armamentário disponível ao estudo destes doentes (endoscopia, TC, angiografia, etc.). O objectivo principal do estudo diagnóstico visa tomar uma decisão de operar consistente e com indicação precisa. Porque pior do que não operar quando é preciso, é operar quando não é. E tudo tem peso, sobretudo perante um doente fragilizado, com uma doença grave a que pode acrescer a morbilidade ligada à idade e à patologia associada.

Portanto, são passos importantes no manuseamento de um doente com AA:
1. Alívio da dor
2. Hidratação (fluidos ev)
3. Descompressão gástrica (nem sempre mas quase)
4. Antibioterapia (peritonite...)
5. Monitorização (parâmetros, diurese, gases do sangue...)
6. Operar... se indicado. Se não, observar. Mas... se o doente não melhora com a terapêutica conservadora, talvez seja melhor operar...

Em conclusão:
- O AA é uma patologia cirúrgica muito frequente
- Os princípios do seu tratamento são inicialmente de suporte, equilíbrio e ressuscitação
- Os exames complementares são importantes para o diagnóstico mas a clinica é “o guia”
- O tratamento cirúrgico deve ser equacionado cuidadosamente caso a caso







Capítulo 7: Hemorragia Digestiva Baixa

A hemorragia digestiva baixa é uma entidade nosológica bastante abrangente, com um diagnóstico diferencial algo extenso, e que surge com alguma frequência nos Serviços de Urgência.
O conceito de HDB engloba todas as hemorragias com origem no tubo digestivo distal ao ângulo de Treitz. Clinicamente manifesta-se por melenas, hematoquézia ou rectorragia. As características do sangue que é exteriorizado dependem do local da hemorragia, do tipo de lesão e da velocidade ou débito da hemorragia.

A HDB tem uma prevalência razoavelmente baixa, com 20 a 27 casos por 100,000 habitantes, podendo representar uma morbilidade de 11,6% e uma mortalidade até 5,4%, dependendo a mortalidade, dos casos cirúrgicos, que têm maior mortalidade.
A grande maioria resolve de forma espontânea. As causas mais frequentes incluem os divertículos do cólon, as hemorróidas e a colite isquémica. Na actualidade, estas 3 etiologias compreendem perto de 60% dos casos de HDB. Evidentemente que outras causas, como a doença inflamatória intestinal, a neoplasia, as telangiectasias, entre outras, deverão também ser incluídas no diagnóstico diferencial.

A distinção mais importante que deve ser, obrigatoriamente, realizada no SU é entre uma hemorragia severa de uma hemorragia moderada. A hemorragia ligeira é, habitualmente de natureza oculta e, como tal, não percebida pelo doente, que não procura ajuda médica por isso. Mas as hemorragias moderada e severa são percebidas pelo doente e ele vem ao SU por esse motivo. É importante notar que a severidade da hemorragia não deve ser inferida pela descrição do doente ou do acompanhante, que habitualmente exacerbam de forma significativa aquilo que viram, A visão de sangue é um evento impressionante e as pessoas tendem a exagerar na descrição.
Na hemorragia severa é regra a instabilidade hemodinâmica e, pela sua importância, desenvolverei o tema mais à frente.
A hemorragia moderada, com o doente estável, permite uma observação cuidada, tentando perceber qual a gravidade da situação utilizando os recursos disponíveis, até chegar a um diagnóstico etiológico para estabelecer o plano de actuação para o doente, que pode ser em regime de internamento ou em ambulatório. A observação do doente tem de incluir um toque rectal minucioso e uma avaliação hemodinâmica cuidada em simultâneo com as medidas de resuscitação julgadas adequadas. A colheita de sangue para hemograma e gasimetria é fundamental para perceber qual a repercussão orgânica da perda de sangue sofrida. A relação ureia/creatinina pode ser útil para inferir a origem da hemorragia. Valores elevados de ureia sugerem o trânsito de sangue ao longo do tubo digestivo e, como tal, uma hemorragia de localização alta.
Alguns dados da história da doença actual e do passado médico podem ser fundamentais para nos guiar no diagnóstico etiológico. A existência de dor, perda ponderal recente, antecedentes de episódios semelhantes, são dados importantes para levantar suspeitas diagnósticas mais precisas. A existência de doença hepática, radiação pélvica prévia e cirurgia por aneurisma da aorta são situações que podem produzir causas de HDB especificas e muitas vezes são esquecidas num interrogatório sistemático (varizes esofágicas ou rectais, proctite rádica, fistula aorto-entérica). Por fim, e sem esgotar este tema, a medicação em uso. A utilização de fármacos que actuam na coagulação (sejam anticoagulantes, orais ou parenterais ou antiagregantes plaquetares) podem influenciar a existência e mesmo a gravidade da hemorragia. Os estudos demonstram que a taxa de doentes que sofre uma hemorragia digestiva é superior em doentes que tomam AINE (com acção antiagregante) comparativamente com a população em geral (19 vs. 9%). De igual modo, e a titulo de exemplo, a taxa de doentes que sofre uma hemorragia digestiva é maior se estes tomam Aspirina do que na população em geral.
Como já referido, o exame rectal é fundamental. Pode mesmo ser o único "meio complementar" necessário neste contexto. A observação de hemorróidas, fissura, aspectos sugestivos de anusite, a palpação de um pólipo, associadas à observação de fezes sem sangue no canal rectal são diagnósticas de uma lesão local. Esta lesão anorectal, apesar de necessitar estudo mais alargado, poderá sê-lo em contexto de ambulatório, dependendo da repercussão orgânica da hemorragia. A maioria das vezes, são referenciados para realização de colonoscopia em ambulatório e medicados com medicação tópica para tratamento dos sintomas. Neste tipo de diagnóstico pode, também, ser muito útil a anuscopia ou rectoscopia que deve ser realizada pelo cirurgião. Na dúvida de se tratar de uma hemorragia digestiva alta (por exclusão de partes, a que tem origem acima do ângulo de Treitz) deve introduzir-se uma sonda gástrica que, se der saída a bile, exclui essa possibilidade. A saída de conteúdo aquoso ou alimentar não exclui de forma peremptória a origem alta da hemorragia, pois o piloro fechado impede o refluxo e esconder uma hemorragia de origem duodenal.
A HDB moderada irá necessitar sempre de uma colonoscopia. Esta poderá ter de ser realizada no mesmo dia, caso o volume da hemorragia o justifique. Por exemplo, o caso de rectorragia sem fonte perianal, testemunha de um débito importante mas com o doente hemodinamicamente estável. Nesse caso, a realização de alguns enemas de limpeza, ou seja, preparação retrógrada, poderá facilitar a visualização da fonte hemorrágica e o seu eventual tratamento endoscópico. Este é muitas vezes o caso, por exemplo, na hemorragia diverticular. Em 88% destes doentes a hemorragia é controlada por clips colocados por endoscopia. No entanto, cerca de 23% recorrem ao fim de 4 anos. Nos casos menos urgentes, como poderão ser a maioria dos casos de hematoquézia, a colonoscopia poderá ser adiada para o dia seguinte, inclusivamente após uma preparação anterógrada ligeira ou parcial. Os estudos revelam que a preparação do cólon permite uma melhor visualização da mucosa, tornando o diagnóstico etiológico mais provável. Porém, após as 24 horas de apresentação, a possibilidade de identificar a fonte hemorrágica vai diminuindo com o tempo, pelo que a colonoscopia não deverá ser adiada mais do que 12 a 24 horas. O diagnóstico de angiodisplasia é o que mais frequentemente pode passar despercebido. 
A HDB pode ter origem no delgado, o que é raro. A maioria dessas situações não é diagnosticada no SU. O doente é inicialmente submetido a um panóplia de exames que podem incluir a TC, a Angiografia e a Cintigrafia com glóbulos marcados e pode mesmo culminar na video-cápsula. Na HDB em geral, o papel da angiografia não se encontra definitivamente definido pela pouca difusão deste exame entre os Hospitais. Sabe-se que tem capacidade diagnóstica e terapêutica e é, por isso, uma modalidade muito apreciada e muito discutida em Congressos. Já a TC, sobretudo a angioTC, pode desempenhar um papel muito importante, mesmo em Hospitais de menores dimensões que não disponham de Angiografia mas tenham uma suite de TC. Permite identificar o local da lesão e pode mesmo identificar o diagnóstico etiológico. Para identificar o local só é necessário haver hemorragia activa e a angioTC identifica um débito de hemorragia inferior ao da Angiografia. Um filme tardio pode mostrar o local da hemorragia onde se acumulou contraste que saiu para o lúmen digestivo e que não foi visto nos filmes iniciais. É um exame a incluir no arsenal de diagnóstico da HDB e nos fluxogramas de orientação destes doentes.

A HDB severa é um capitulo à parte. A tomada de decisão é, aqui, fundamental. O doente encontra-se hemodinamicamente instável, é, na maioria das vezes idoso (> 65 anos) e a mortalidade associada é superior a 20%. Se há necessidade de cirurgia urgente a mortalidade é ainda mais alta (20 a 50%).
A cirurgia está indicada ma instabilidade hemodinâmica não reversível com os meios de resuscitação disponíveis, na hemorragia continuada por mais de 72 horas, na recorrência da hemorragia após 24 horas e em todos os doentes que necessitem de mais de 6 UCE nas 24 horas. Nestes casos, a angioTC pode ser o método de imagem mais valioso, mesmo se dispomos de Angiografia. Ela permite orientar o tratamento e evitar quer uma laparotomia às cegas que pode ser desastrosa quer uma Angiografia às cegas, menos sensível que uma angiografia dirigida, superselectiva.
Classicamente, perante uma HDB de origem não esclarecida as opções eram a ressecção segmentar e a colectomia subtotal. Presumir a origem da hemorragia pela idade, pelo aspecto do sangue e pela cor do cólon não é boa política. A realização de ressecção segmentar nestas circunstâncias tem uma taxa de recorrência hemorrágica muito elevada. Por esse motivo, e nestas condições, recomenda-se a colectomia subtotal, apesar dos riscos inerentes. A realização de colonoscopia na mesa é, a maioria das vezes inútil, gasta tempo e não ajuda na toma de decisão. Pode identificar sangue no cólon direito em casos de hemorragia à esquerda e vice-versa, o que conduz a uma tomada de decisão errada e a uma cirurgia inútil. A angioTC pode, aqui, ter um papel fundamental, podendo indicar uma cirurgia mais conservadora.
O melhor é não ter de operar estes doentes e resolver o problema de forma não cirúrgica. Mas se tivermos de avançar há que reunir a equipe e prepará-los para uma cirurgia de elevado risco, muitas vezes num doente muito mau. Há que ter produtos sanguíneos prontos antes de avançar. A colocação do doente em posição de litotomia é útil, quer para a possibilidade de uma endoscopia, quer para a realização rápida de uma anastomose mecânica. Antes de entrar no bloco, seria bom por o Gastroenterologista de sobreaviso.

Fluxograma baseado nas guidelines do Colégio Americano de Gastroenterologia (1998). Neste fluxograma acrescentaria e daria maior importância à AngioTC no quadro onde surgem a Angiografia e o Cintigrama. Conforme se encontra explicito no texto, a AngioTC é, actualmente, de grande importância na localização da hemorragia, sobretudo na hemorragia severa e nas situações com indicação cirúrgica.


Em Conclusão:
- HDB habitualmente pára espontaneamente
- Se não parar, manter tratamento de suporte, com paciente aquecido, fornecer UCE e suspender terapêutica que possa agravar a hemorragia
- Há que considerar os recursos locais: há endoscopia? TC? Angio?
- Restringir a cirurgia aos doentes com um diagnóstico preciso ou nos doentes em que o controlo da hemorragia falhou usando outras modalidades de tratamento








sexta-feira, 1 de julho de 2016

Capítulo 6: Cirurgia na necrose pancreática

A pancreatite aguda é uma entidade nosológica muito comum, sendo um motivo frequente de recurso ao Serviço de Urgência. A responsabilidade pelo seu tratamento varia de Hospital para Hospital mas eu entendo ser um patologia cirúrgica que deve ser abordada por uma equipe multidisciplinar em que o cirurgião assume um papel preponderante. Apesar disso, a cirurgia na pancreatite aguda é rara, excluindo a colecistectomia para prevenção de novos episódios de pancreatite aguda, quando de etiologia biliar ou litiásica.
Há, no entanto, uma indicação cirúrgica que se tem mantido, apesar da evolução dos pensamentos nos últimos anos: a necrose pancreática infectada.

" Acute pancreatitis is the most terrible of all the calamities that occur in connection to the abdominal viscera. The suddenness of its onset, the illimitable agony which accompanies it, and the mortality attendant upon it, render it the most formidable of catastrophes."
B. Moynihan, 1925

A pancreatite aguda é reconhecida como patologia desde há muito. Em 1652, Nikolaus Tulp faz a primeira descrição anatomo-patológica conhecida. Em 1842, Heinrich Claessen identifica a pancreatite aguda como entidade clínica e em 1883, Hasn Chiari atribui à sua etiopatogenia as propriedades auto-digestivas, que ainda hoje conhecemos. Ao longo do século XIX a abordagem da pancreatite sofre diversos processo evolutivos, sendo em 1845 descrita a primeira drenagem de abcesso por Wandeleben. Em 1886 os parâmetros clínicos e laboratoriais para o seu diagnóstico são estabelecidos pela primeira vez (Nikolas Senn). É este último autor, também, o primeiro a tecer considerações lógicas sobre a necessidade de cirurgia na pancreatite aguda.




No inicio do século XX, várias técnicas cirúrgicas foram experimentadas, todas elas com elevadíssima mortalidade, o que não diferia da mortalidade da pancreatite aguda severa sem a abordagem cirúrgica. Em 1911, Hoffman considerava a pancreatectomia total como a medida mais segura de eliminar o foco inflamatório primário.
Rapidamente se começou a perceber que a cirurgia não era solução. Nesse sentido, Okinczyc, em 1933, afirma: "go right to the target, expose the gland, drain, and hope!"
A noção de que talvez a infecção pudesse beneficiar com cirurgia começava a enraizar, um conceito que iniciara os seus primeiros passos ainda no final do século XIX, com Werner Koerte (1894).




“A justificação para a intervenção cirúrgica na pancreatite aguda necrotizante foi sempre baseada na suposição que as taxas de mortalidade melhorariam com a cirurgia, e que as suas complicações, como a infecção secundária e a falência de órgãos pudesse ser eliminada ou substancialmente reduzida”

Bradley and Dexter, 2010


Neste universo de tantas dúvidas. É difícil responder de forma adequada às perguntas importantes:

1. Quem operar?

A defesa para operar os doentes com necrose estéril baseava-se nos pressupostos que a cirurgia poderia:
- Reduzir o "load" de mediadores inflamatórios sistémicos e assim reduzir o síndrome de disfunção orgânica múltipla;
- Reduzir o "load" enzimático local e assim reduzir a necrose e
- Reduzir o volume do tecido necrótico e assim reduzir a possibilidade de infecção.

No entanto, diversos estudos vieram mostrar que o tratamento conservador da necrose estéril era possível e com uma taxa de mortalidade inferior à dos doentes operados (2,3% vs. 11,9%). Por isso, concluiu-se que a necrose não infectada tem de ser manuseada de forma conservadora de princípio e a presença de necrose pancreática não é indicação, por si só, para exploração cirúrgica.
Porém, relativamente à necrose infectada, as conclusões já não são as mesmas. A infecção da necrose pancreática é um fenómeno tardio, acontecendo depois da 3ª semana de evolução da doença. No entanto, é um facto que triplica a mortalidade, sendo, por isso, o mais importante factor de prognóstico na pancreatite aguda complicada. A mortalidade elevada, superior a 30%, foi verificada em várias séries cirúrgicas recentes (desde os anos 80). E, como a mortalidade com a terapêutica não cirúrgica para a necrose infectada no passado é elevada (70 -100%), a randomização torna-se eticamente reprovável e um estudo comparativo difícil de obter.

Mesmo assim, um estudo publicado na Pancreas em 2005 por Runzi et al. demonstrou, em uma série de 88 doentes consecutivos com pancreatite aguda severa em que 28 desenvolveram necrose infectada e nenhum foi operado, uma mortalidade de 12%.

Porém, actualmente, estes dados são ainda controversos e o standard é, de facto, a cirurgia, perante necrose pancreática infectada. 
A infecção é reconhecida pela TC, apresentando gás nas colecções necróticas, ou pela persistência da sépsis, laboratorial (Procalcitonina, etc.) e clínica (falência de órgãos). A punção com agulha e exame bacteriológico é um assunto polémico, sobretudo entre cirurgiões. A contaminação é possível assim como é a sobreinfecção da necrose estéril.

Portanto, é indiscutível que a necrose pancreática infectada é uma indicação cirúrgica. A necrose estéril, não. Excepto em casos muito particulares...

2. Quando operar?

A questão seguinte é esta. E não é fácil de responder. Ao longo da história, não muito longa, já que eu próprio recordo alguns desses momentos, assistimos a opiniões distintas. Durante algum tempo defendeu-se a cirurgia precoce, mesmo sem diagnóstico de necrose pancreática. Rapidamente se percebeu que esta atitude não era favorável e que a morbilidade e mortalidade eram elevadas. Vários estudos de vários autores consagrados na matéria (Bradley, Sarr, Beger...) vieram confirmar esses achados empíricos. De facto, a cirurgia precoce era perigosa. Em 1997, Mier tentou demonstrar, em estudo randomizado, a diferença entre as duas abordagens, mas o estudo teve de ser interrompido por mortalidade excessiva no grupo de cirurgia precoce. Os valores de mortalidade encontrada eram de 56% para o grupo de cirurgia precoce e de 27% para o grupo de cirurgia tardia.

Os achados eram promissores, já que a indicação cirúrgica se limitava à infecção e o momento certo para a cirurgia era após as 4 semanas de evolução da pancreatite, altura em que iniciam a surgir os sinais de infecção. Os autores acreditam que a espera produz melhor demarcação do tecido necrótico, melhor visualização das alterações pancreáticas e peri-pancreáticas à TC o que permite um melhor planeamento e uma cirurgia com menor morbilidade.

3. Como operar?

O consenso mantém-se relativamente à necrosectomia. A forma como consegui-la é, hoje, fonte de disputa.
É fundamental evitar ressecções que poderão produzir dano entérico ou vascular e levar a complicações difíceis, ou mesmo impossíveis, de resolver. Há que remover o tecido pancreático e peri-pancreático necrosado e infectado, fonte do estado inflamatório e da sépsis. Há, também, que drenar colecções infectadas que contribuem de igual modo à manutenção da disfunção orgânica.
Classicamente, a necrosectomia por via transperitoneal é a via de eleição. A laparotomia permite um acesso fácil e rápido à cavidade retroperitoneal e uma necrosectomia completa. Se é seguida por encerramento primário ou laparostomia, a questão já é mais controversa. Bradley defende a laparostomia para permitir desbridamentos sucessivos, porque acredita que a primeira visita não é suficientemente eficaz. Também, a laparostomia, ajuda a prevenir o síndrome de compartimento. A via transperitoneal tem um problema não desprezível, uma taxa elevada de complicações. Fistulas digestivas, hemorragia, isquémia intestinal, hérnia incisionais e complicações metabólicas (diabetes) são comuns. De acordo com as séries e com as complicações descritas, a taxa de morbilidade pode variar entre 45 e 90%. A mortalidade é, também, elevada, mas dependente do estado critico do doente, com taxas entre os 7 e os 44%. 

Apesar de vários relatos de abordagem laparoscópica da necrose pancreática infectada, com diversas vias de abordagem e vários resultados, a abordagem transperitoneal manteve-se o Gold Standard na abordagem desta patologia. No entanto, a perspectiva poderá estar a mudar, à medida que mais autores utilizam as técnicas minimamente invasivas e reportam os seus resultados, que parecem ser, tendencialmente, melhores. Não são é baseados em estudos comparativos.

Em 2010 foi publicado no NEJM o resultado do estudo PANTER, que veio modificar a maneira de pensar a abordagem da necrose pancreática infectada. Trata-se de um estudo multicêntrico Holandês, com 88 doentes com necrose pancreática e suspeita ou confirmação de necrose infectada, divididos em 2 grupos. Um dos grupos foi submetido a necrosectomia transperitoneal e o outro a uma abordagem step-up. A abordagem step-up consiste numa abordagem progressivamente mais invasiva, iniciando-se com a drenagem simples guiada por métodos de imagem, passando por diversas técnicas endoscópicas e laparoscópicas, podendo culminar numa abordagem tradicional, transperitoneal. O estudo revelou que, apesar de uma taxa de mortalidade semelhante (16 vs. 19%), as taxas de complicações major e de falência orgânica de novo foram mais favoráveis no grupo step-up, bem como as taxas de hérnia incisional e diabetes de novo. A análise económica mostrou que, apesar da utilização de metodologias diferentes, a abordagem step-up permitiu reduzir os custos em 12%. As conclusões finais do trabalho foram que a abordagem em step-up permitiu:
- Reduzir a taxa de grandes complicações 
- Reduzir as complicações a longo prazo
- Reduzir o tempo e necessidades relacionados com os cuidados de saúde
- Reduzir os custos
- Que cerca de 1/3 dos doentes fossem tratados apenas com drenagem percutânea 
Poderá estar aqui o futuro do tratamento da necrose pancreática infectada. Esperemos pelos desenvolvimentos. Ainda existem muitos défices em muitos centros e nem todos têm meios e tecnologia para abordar a patologia deste modo.

Uma palavra final para uma entidade que tem sido descrita mas tem tido pouca atenção da parte dos grupos de trabalho que classificam e criam linhas de orientação para o estudo e tratamento da pancreatite aguda. Apesar da última revisão de Atlanta (2012) ter incluído 3 tipos de severidade na pancreatite aguda, a verdade é que parece existir um quarto tipo que, embora incluído na pancreatite aguda severa, apresenta uma estatística e história natural distintas. Alguns autores chamam-lhe a pancreatite aguda fulminante e caracterizam-na como associada a falência orgânica e necrose extensa (superior a 50%) de aparecimento durante a apresentação da doença ou nas primeiras horas de evolução. A taxa de infecção da necrose pancreática nestes casos é baixa e apresenta um elevadíssima mortalidade, habitualmente associada a Síndrome de Compartimento Abdominal. Esta situação pode representar uma indicação cirúrgica em necrose estéril, quando há ausência de resposta ao tratamento intensivo por um período máximo de 72 horas, sendo a cirurgia um último recurso. O tratamento consiste na realização de descompressão abdominal e laparostomia. A necrosectomia deverá evitar-se, já que se associa à sobreinfecção subsequente, o que aumenta de sobremaneira a mortalidade.

Em Conclusão:

1. Pontos consensuais:
  • A cirurgia na necrose infectada:
    • Deve ser realizada de preferência depois das 4 semanas de evolução
    • Consiste em Necrosectomia
  • A cirurgia pode estar indicada em caso de falência/disfunção orgânica múltipla sem resposta ao tratamento intensivo 
2. Pontos discutíveis:
  • Técnica transperitoneal:
    • Encerramento diferido
    • Encerramento primário
  • Via de abordagem:
    • Laparotomia mediana
    • Laparotomia subcostal
    • Via minimamente invasiva
  • Necrosectomia no SCA?

Na pancreatite aguda severa:
“Operamos doentes, não pâncreas” 
A cirurgia deve ser realizada em função do estado fisiológico do doente e da sua evolução clínica.





quarta-feira, 29 de junho de 2016

Capítulo 5: NOACs, Transfusão Massiva e coisas com sangue em geral - Parte II

Desta vez falamos de Transfusão Massiva.

Em qualquer reunião a que vá em que falamos sobre este assunto, pergunto sempre quem tem um Protocolo em vigor no seu Hospital e responde positivamente a maioria dos presentes. Porém, quando falamos nos corredores em Off acabo por perceber que nem sempre assim é. Pelo menos, na prática. Por experiência própria, noto haver muita gente que acha que sabe tudo, mas quando chega o momento e no meio do stress, até dificuldade têm em interpretar o fluxograma.

Transfusão refere-se à administração de sangue ou componentes do sangue. O primeiro registo conhecido de uma transfusão bem sucedida, terá sido o de uma transfusão de um cão para outro no século XVII por Richard Lower, médico particular de Carlos II. Ainda nesse século, em junho de 1667, Jean Baptiste Denys, médico de Louis XIV, transfundiu com sangue de caprino um homem, para tratamento da sua demência. Em Novembro do mesmo ano, Richard Lower fez o mesmo em Inglaterra. São os primeiros relatos de transfusões com seres humanos. Apesar dos resultados não terem sido completamente desastrosos, o doente de Lower sobreviveu, a transfusão humana só iria evoluir após mais de 150 anos… em 1818 com James Blundell.

Quase dois séculos depois falamos de Transfusão Massiva (tem havido alguma confusão relativamente ao termo a utilizar, se massiva ou maciça. Na minha opinião, e segundo os dicionários da lingua portuguesa que pude consultar, são termos diferentes e designam características diferentes. Assim, maciço é algo que não é oco, é compacto. A nossa designação de Transfusão Maciça vem do inglês e foi traduzida directamente. No entanto, a utilização no anglo-saxónico de massive, refere-se a algo de grandes dimensões, volumoso. Mais de acordo com o conceito de Transfusão Massiva, este termo é relativo a massas, a um grande número de pessoas ou que ocorre em grande quantidade. Por isso, o termo adequado deverá ser Transfusão Massiva que vou designar daqui em diante como TM.

A TM refere-se a uma reposição sanguínea de grande volume, habitualmente definida como sendo de 10 ou mais UCE nas 24 horas. Este conceito, embora correcto, implica um intervalo de tempo longo, pouco adaptável a situações de perda rápida de sangue, que os doentes que necessitam de TM habitualmente sofrem. Por isso, surgiu uma definição mais curta que implica a reposição superior a 5 UCE em 3 horas. Mas há mais... 

Definições de "massive blood loss"



Os doentes mais vulgarmente envolvidos neste tipo de catástrofe são os doentes com aneurisma da aorta, submetidos a transplante, com hemorragia digestiva, com hemorragias obstétricas e vitimas de trauma. Cerca de 10% dos doentes vitimas de trauma vão necessitar de algum tipo de transfusão e destes, 3% requerem uma TM. Se incluirmos só os doentes que entram nos Serviços de Urgência em choque, 24% vão necessitar de TM. Quase metade dos doentes que morrem por trauma morrem por exsanguinação. A transfusão de produtos sanguíneos reduz a mortalidade de forma significativa (quase 45%).

Perante um hemorragia massiva, a estratégia clássica passava pelo controlo da hemorragia e a reposição de volume com cristalóides e produtos sanguíneos. Esta estratégia visava a obtenção rápida da normovolémia, acreditando-se que seria essa a variável que levaria à homeostase. Lembro-me muito bem de ter lido no Schwartz (em 1990) uma experiência de ressuscitação, com melhores resultados quando se usava cristalóides associados ao concentrado de eritrócitos, em ratos. Boas noticias para os ratos. Também me lembro de, em 2009, assistir a palestras do Professor Mattox em Antalya (10th ECTES) em que ele afirmava que estávamos todos loucos porque ressuscitávamos os nossos doentes com água e sal. Achámos que o louco era ele...
Poucos anos depois percebemos que a estratégia que hoje consideramos clássica produzia edema por hiperhidratação, com risco de ARDS, Síndrome de Compartimento Abdominal e outras alterações celulares que culminavam no agravamento da coagulopatia e aumento da mortalidade.
A tríade da morte (acidose, hipotermia e coagulopatia) é o maior inimigo do doente e evitá-la a todo custo tem de ser o nosso objectivo primário. Mas, sabemos agora, um terço dos doentes vitimas de trauma grave chega coagulopático ao Hospital, colocando problemas adicionais. É impossível tratar o doente antes deste sofrer a agressão. Mas é possível travar o consumo e a diluição dos factores de coagulação, reduzir a actividade inflamatória e hormonal que desenvolvem as alterações patológicas associadas parando a hemorragia, tratando a hipóxia e a acidose, evitando a hipotermia e dando ao doente factores sanguíneos que prevemos necessários. 

A estratégia de controlo de danos aplicada à ressuscitação é a base em que se sustenta a TM. Por não conhecermos o doente, porque ele se apresenta em desequilíbrio, porque a avaliação desse estado é demorada e porque não se pode perder tempo, vamos fornecer ao doente aquilo que é necessário para regressar ao equilíbrio. Empiricamente.

O Protocolo de TM integra a estratégia de controlo de dano e nessa sequência, deve ser activado precocemente. Existem vários sistemas de classificação que permitem prever a necessidade de TM e estes devem ser usados para justificar a sua activação. Dos mais usados, o ABC, utiliza apenas dados de obtenção rápida como a tensão arterial (doente em choque), a frequência cardíaca, a história de trauma penetrante e a positividade do FAST. Uma vez activado, o fornecimento de produtos sanguíneos deve ser expedito e numa proporção favorável. Este conceito é muito controverso e a proporção ideal é desconhecida. Actualmente há uma tendência para a aproximação ao sangue total, com uma proporção de 1:1:1. Há estudos, no entanto, que referem ser importante ter uma proporção para servir de objectivo a atingir, para que os produtos sejam fornecidos em tempo útil. Isso parece ser mais importante do que a proporção propriamente dita.
Portanto: fornecer eritrócitos, para o transporte do oxigénio e plasma e plaquetas, para combater a coagulopatia. 
Além disso, os estudos favorecem a utilização de ácido tranexâmico (CRASH-2). Acredita-se que a coagulopatia associada ao trauma se inicia como um estado de hiperfibrinólise. A administração de ATX, um fármaco anti-fibrinolítico pode ser útil, se administrado cedo após o trauma. Apesar de aparecer em algumas publicações a utilização de ácido eta-aminocapróico como substituto do ATX, não existe na literatura nenhum suporte cientifico para o efeito. Existe um meta-análise da Cochrane que o refere mas sem apresentar nenhum estudo que o suporte. Mesmo em relação ao ATX, o seu beneficio é marginal, no entanto, é recomendado.
O Protocolo deve ser flexível e permitir controlo laboratorial. Fala-se muito do ROTEM que para a maioria de nós é ficção cientifica. Mas o controlo da coagulação e a administração de fibrinogénio e concentrado protrombínico podem ser importantes.
É óbvio que um terapêutica desta agressividade não é isenta de complicações. Reacções transfusionais, lesões pulmonares, transmissão de doenças e alterações hidroelectroliticas são apenas alguns exemplos. Por esse motivo, o Protocolo de TM deve ser abortado logo que a situação esteja controlada. 

No final, com o PTM conseguimos:
- Administração de ratios apropriados de produtos sanguíneos em tempo útil
- Reduzir a taxa de SCA e de abdómen aberto
- Reduzir a taxa de complicações sépticas, nomeadamente pneumonia
- Reduzir a taxa de Falência Orgânica Múltipla
- Reduzir a estadia hospitalar
- Reduzir a mortalidade
- Poupar dinheiro

A estratégia clássica apresentava, entre os anos 70 e 90, uma taxa de mortalidade variável entre 60 a 90%. A estratégia de controlo de dano reduziu, em menos de 20 anos, a taxa de mortalidade para valores máximos próximos dos 30%, sendo um factor independente preditor de sobrevivência.

O PTM encontra-se legislado desde 2013 com a Norma da DGS 011/2013 que estabelece as indicações para a sua execução e fornece um fluxograma de fácil compreensão e utilização. Não é perfeito, mas é um Protocolo e deve ser usado, tendo de ser adaptado ao local em que se usa. Os PTM são instrumentos institucionais que melhoram a comunicação, a disponibilidade e o tempo de espera dos produtos sanguíneos e, com isso, baixam significativamente a mortalidade.




terça-feira, 28 de junho de 2016

Capítulo 5: NOACs, Transfusão Massiva e coisas com sangue em geral - Parte I

“the cardiologist’s darling, the intensivist’s headache, and the trauma surgeon’s
nightmare”

Moshe Schein, Paul Rogers, Ari Leppaniemi, Danny Rosin
Schein's common sense prevention and management of surgical complications

É isso mesmo. 
NOACs, ou non vitamin K antagonists oral anticoagulants, despertam emoções diferentes em pessoas diferentes.
O aparecimento dos anticoagulantes orais foi, sem sombra de dúvida, um avanço médico extraordinário, sobretudo para doentes com patologia cardiovascular grave. Mas, não existe bela sem senão... juntamente com as vantagens surgiu um corrupio de complicações hemorrágicas, cuja avaliação, manuseamento e prevenção enchem inúmeros capítulos de manuais médicos. 
A varfarina, utilizada inicialmente, e ainda hoje,  como pesticida (sobretudo para matar ratos...) foi usada com fins médicos pela primeira vez em 1954 e continua a droga anticoagulante mais prescrita nos Estados Unidos hoje. Contudo, exibe um perfil farmacodinâmico pouco amigável, sendo muito influenciado pela alimentação e pela interacção com outros fármacos. O risco de sobredosagem e de subdosagem - muito frequentes - obriga à sua utilização aliada a um controlo laboratorial rigoroso.
Os NOACs são uma nova geração... a geração das calças ao fundo do rabo... para uns o último grito da moda, para outros, uma moda rasca.
O composto BIBR 953, conhecido actualmente como Dabigatrano, foi o primeiro NOAC disponível no mercado, recebendo a aprovação da FDA em 2008. O seu parto não foi eutócico. Há muito que se investigavam potenciais anticoagulantes orais alternativos, mas nenhum mostrou ser tão seguro e eficaz como o Dabigatrano. Recordo-me da fase clinica de outros produtos, com tudo pronto para serem distribuídos no mercado, serem retirados de forma expedita após os ensaios mostrarem alterações hepáticas importantes...
Mas entretanto, chegou o Dabigatrano. Prometia ser mais seguro e igualmente eficaz. Com a sua farmacodinâmica mais previsível, o Dabigatrano não necessita de controlo laboratorial. Atrás deste surgiram o Rivaroxabano e o Apixabano. E há mais a caminho... 
NOACs foi a designação inicial destes fármacos e significava new oral anticoagulants. O problema é que, à medida que a ciência avança, estes deixaram de ser novos. No entanto, o termo NOAC já havia penetrado o suficiente o léxico médico que não era possível removê-lo. Muitas das pesquisas efectuadas eram-no com este termo, pelo que se manteve com um novo significado: non vitamin K antagonists oral anticoagulants
As indicações actuais para estas drogas são muito restritas: fibrilhação auricular não valvular e tratamento e profilaxia da doença tromboembólica (periférica ou pulmonar). O futuro poderá ver surgir mais, mas actualmente apenas estas são aprovadas pelo FDA. Mas a varfarina será ainda utilizada por muito tempo.

O problema é a hemorragia... essa é uma complicação comum a todos os anticoagulantes, orais ou parenterais. Nos estudos, os NOACs revelaram ser mais seguros que os dicumarínicos, mas com uma taxa de complicações hemorrágicas não desprezível. E se existem situações clínicas que cursam com hemorragias espontâneas, imaginem como é quando estes doentes precisam de ser operados. Habitualmente já se trata de doentes idosos com polipatologia e polemicados. Acresce-lhes a morbilidade de tomarem um anticoagulante. Por vezes associado a um antiagregante... como é para resolver este problema?
Em circunstâncias de rotina parece fácil. Se a situação é de risco tromboembólico suficientemente elevado, será necessário fazer "bridging" com heparina de baixo peso molecular. A semi-vida curta dos NOACs permite a sua suspensão 48 horas antes da cirurgia, em segurança. Excepto em doentes com insuficiência renal ou hepática... 
Já na urgência... a coisa é diferente. O doente precisa de ser operado rápido. Como é fácil de perceber, não existem guidelines para a urgência sobre este assunto. Sobre cirurgia de rotina há muito material, mas sobre urgência... Pelo que, a opção será utilizar as guidelines da rotina e adaptá-las ao ambiente mais inesperado do serviço de urgência.
Se o doente precisa de ser operado já, como em casos de sépsis grave e/ou trauma, opera-se já. Se a indicação cirúrgica é a hemorragia, há que reverter a anticoagulação de forma adequada. Activar o Protocolo de Transfusão Massiva (para quem tem) e operar o doente para parar a hemorragia. Se a indicação é sépsis, a literatura recomenda que não seja revertida a anticoagulação, a não ser em caso de hemorragia intra ou pós-operatória moderada a grave.
Se o doente puder esperar, há que saber como tem a coagulação e, se estiver muito alterada, esperar o suficiente para as alterações normalizarem (habitualmente 12 a 24 horas). Podem usar-se os resultados do APTT e do PT.
Há excepções, claro. Os doentes com insuficiência renal, cirrose, medicados com antiagregantes ou com fármacos que competem na metabolização hepática dos NOACs como a Amiodarona, o Verapamilo, a Rifampicina e o Ketoconazol. Entre outros. Nestes caso, talvez seja melhor também reverter. No caso do Dabigatrano o doente pode ser dialisado para eliminar o fármaco do sangue.
A reversão deve ser efectuada com Concentrado Protrombínico (25 a 50 U/kg). Existem outras opções, como o plasma fresco, mas neste aspecto a literatura é unânime. Nada de factor VII activado, é perigoso e não ajuda.

A retoma do NOAC é importante, já que os doentes tomam este medicamento porque têm patologia que os predispõe a fenómenos tromboembólicos. Por isso, há que retomar o NOAC logo que seja possível. Isto significa que, em cirurgias de baixo risco hemorrágico pode ser logo após 12 horas da intervenção. Em caso de cirurgia de elevado risco, há lugar para uma substituição por heparina de baixo peso molecular durante o período crítico e re-iniciar o NOAC logo que possível, sempre 12 horas após a última toma de HBPM.

E sobre NOACs, em resumo, é isto...