sábado, 16 de julho de 2016

Capítulo 10: Trauma - Parte I: Cuidados integrados em trauma

Como em muitas outras situações na vida, tendemos a copiar uns dos outros as coisas que funcionam bem. E, como em muitas outras situações na vida, nós "tugas", tendemos a fazê-lo demasiado tarde. Em relação ao trauma temos décadas em atraso.

Durante muitos anos foi tudo ao molho em fé em Deus. Ainda me lembro desses tempos. Cada vez que entrava o que podia ser um traumatizado grave no Serviço de Urgência, todo o pessoal caía sobre o doente e eu, jovem interno do primeiro ano, tinha que nadar através de um mar de gente só para conseguir fazer uma gasimetria... Depois apareceu o ATLS. E, de repente pareceu que a grande preocupação de todos era o trauma. Vários tipos de formação pós-graduada ligadas ao trauma surgiram como cogumelos em todo o lado... Não posso afirmar que tudo foi mau, porque não é verdade. A tomada de consciência para o trauma despertou um gosto especial pelo tratamento do doente crítico em todos os profissionais ligados à saúde, levando a uma evolução nos cuidados críticos e na forma como abordamos esses doentes que se sente até hoje. Nessa onda surgiram conceitos de controlo de dano, resuscitação hemostática, cirurgia fisiológica... mas, não é esse o tema que me traz aqui hoje.

Os cuidados integrados em trauma são um conceito muito antigo. A primeira pessoa a pensar nisso como sendo uma necessidade para melhoria de cuidados foi, provavelmente, Jean Dominique Larrey. Este membro da aristocracia francesa do século XIX, cirurgião do Imperador Napoleão, inventou a ambulância e os Hospitais de campanha, reduzindo em mais de um terço a mortalidade dos combatentes franceses que participaram nas invasões napoleónicas.

O conceito essencial quando se fala em cuidado integrados é o de Rede de Trauma. A Rede de Trauma pode ser definida como uma resposta planeada e coordenada ao doente vitima de trauma capaz de providenciar tratamento standard e adequado em tempo útil, independentemente do local em que a vitima seja observada. Este conceito é originário de países em que a incidência do trauma é elevada, sobretudo do trauma penetrante, mas é útil para países em que a incidência é baixa, produzindo um estado de alerta permanente e mantendo o sistema preparado para actuar. Uma Rede de Trauma adequada integra múltiplos elementos, desde o atendimento no local até à re-integração da vitima na sociedade. E é esta integração dos elementos em rede que permite, não só melhorar os cuidados, mas também evitar a duplicação de recursos e maximizar a utilização dos recursos existentes. Parecendo uma questão perfeitamente lapalissiana, a realidade é, no entanto, bem distinta. Tem havido várias tentativas de produzir, ou reproduzir uma espécie de Sistema de Trauma no nosso país. Porém, tem havido dificuldades. Desde 2010 que a Direcção Geral de Saúde tornou obrigatória a criação de uma Via Verde de Trauma nos Hospitais, através da publicação de um Norma em março/2010, para cumprimento até ao fim de 2011. Estamos em 2016 e conheço poucos hospitais onde foi implementada.
O Sistema de Trauma deve incluir normas e regras relativas à abordagem pré-hospitalar e hospitalar, mas também à prevenção e reabilitação. E é fundamental, que possua um mecanismo de auto-avaliação.
O Sistema de Trauma adequado deve ser inclusivo. Isto significa que tem de providenciar cuidados de qualidade a todos os doentes, independentemente da sua gravidade, mas também utilizar todos os recursos disponíveis de todos os hospitais da região, evitando assim o "afogamento" dos grandes centros com casos minor. O que importa é que cada doente receba o tratamento adequado à gravidade das suas lesões. O objectivo de um sistema inclusivo é, portanto, equiparar os recursos de cada hospital com as necessidades de cada doente aí transportado. Para tal é necessário uma sistema de triagem que deverá iniciar-se desde a abordagem pré-hospitalar, com apoio médico, de forma a decidir para onde o doente é referenciado. Esta metodologia permite que as vitimas mais graves sejam sempre atendidas num centro de cuidados mais diferenciados, que serão apenas 5 a 10% dos casos, mas que consomem mais recursos. E poupa-se tempo.
O sistema integrado, com todas as suas componentes, é capaz de reduzir o número de acidentes, através de manobras preventivas eficazes e reduzir a morbilidade, reduzir os tempos de internamento, reduzir os custos das incapacidades e produzir uma recuperação mais rápida, através de uma melhor qualidade de cuidados.
Todos os aspectos aludidos são importantes. A maioria das vezes que pensamos em trauma, pensamos na sua elevada mortalidade, sobretudo em doentes jovens, em idade activa. Mas não devemos esquecer que por cada doente que morre, há 3 que ficam permanentemente incapacitados e, por isso, os encargos pessoais, familiares e sociais envolvidos são avultados. O trauma é, também, uma causa major de absentismo laboral.
No nosso país, a principal causa de trauma grave é a sinistralidade rodoviária. Depois, as quedas, sobretudo numa população mais idosa. E os números, apesar de terem melhorado gradualmente ao longo dos últimos anos, continuam assustadores. Há 20 anos, o trauma era responsável por cerca de 850 mortes por ano, de um total de 350.000 "acidentes". Já em 2009 morreram 1039 pessoas (a população também cresceu...) só em acidentes de viação. Ainda há muito a fazer do ponto de vista preventivo.
Por isso, o primeiro aspecto a ter em consideração é a prevenção. A prevenção em trauma é um pouco descurada pelas autoridades e mesmo pelos profissionais de saúde. Quem tem preocupações mais atentas sobre esta questão são os engenheiros: os que fazem as estradas, os que fazem as pontes, os que constroem os carros e as motas... Há 4 tipos de prevenção: a primária, cujo objectivo é evitar que aconteça o evento (a obrigatoriedade da carta de condução é um exemplo); a secundária, cujo objectivo é minimizar os efeitos após o evento ter acontecido (cinto de segurança, airbag, rails...), a terciária, cujo objectivo é evitar as complicações do evento (hospitais, ATLS...) e, por fim, a quaternária que permite impedir que o evento se repita (tratamento de reabilitação anti-alcoólica). Estes aspectos são estudados de forma exaustiva por vários tipos de cientistas que depois criaram uma espécie de grelha de integração dos diversos aspectos a que deram o nome de Haddon Matrix, que é auto explicativa:

How to Write an Action Plan. 
Published byDoris Howard; http://slideplayer.com/slide/7058591/
Daqui resultam os quatro E's da estratégia preventiva: Education (mais uma vez a carta de condução), Enforcement (multas, etc.), Engineering (construtoras) e Economics (como em tudo).
O aspecto seguinte é a abordagem pré-hospitalar. E voltamos a falar novamente no Jean Dominique Larrey. De facto, o conceito que ele implementou nos campos de batalha traduz muito bem o que deve ser o serviço pré-hospitalar hoje: acesso rápido ao local, atendimento e transporte para cuidados definitivos. Quem deve estar envolvido neste serviço depende muito da disponibilidade dos recursos humanos e das características geográficas locais. É compreensível que numa cidade como Nova Yorque, a utilização de médicos na rua não é exequível, mas na nossa realidade é e funciona muito bem. O tipo de atendimento local (scoop & run vs stay & play) depende da avaliação efectuada e do tipo de situação presente. Actualmente dá-se preferência ao scoop and run, mas nem todas as situações se adequarão a esse método. O local para onde a vitima vai deve ser o centro mais próximo e mais adequado. Tive o cuidado de não escrever Hospital mas centro, o que ficará explicado em seguida. A abordagem pré-hospitalar deve ter, obrigatoriamente, controlo médico, seja directo, por protocolos ou por outro meio que se entenda eficaz. E deve ter algum tipo de controlo de qualidade e auditoria regular. Só dessa forma podemos perceber o que fazemos e se estamos a fazê-lo bem. Não vou tecer comentários sobre recursos materiais e meios de transporte em cuidados pré-hospitalares por entender não ser esse o objectivo deste texto. Mas não posso deixar de referir a questão da triagem. Num sistema de trauma inclusivo, a triagem é fundamental. É na triagem que se baseia, em grande medida, o sucesso do sistema, permitindo algum grau de sobretriagem, evitando o mal maior que é a subtriagem. É preferível que um doente ligeiro seja abordado inicialmente num centro de elevada diferenciação do que um grave num centro não diferenciado e necessitar de uma transferência secundária. A triagem mais utilizada no mundo baseia-se em critérios fisiológicos, anatómicos, lesionais e de comorbilidades, tentando calcular a gravidade da vitima de forma a poder classificá-la e com resultado desse cálculo, seleccionar o local de abordagem inicial. Trata-se de um sistema de avaliação progressivo, que, permitindo alguma subjectividade, envia o doente para o nível de cuidados superior sempre que haja dúvidas e assim, evita a subtriagem. Ou redu-la o mais possível. 
http://www.scrtac.org/SCRTAC_Transport_Guidelines.html
O Centro de Trauma é um hospital/centro de atendimento dentro do sistema, equipado para lidar com doentes vitimas de trauma múltiplo e definido de acordo com a sua localização estratégica e acessibilidade, o tipo de recursos disponíveis, incluindo a diferenciação técnica e cientifica dos seus profissionais, e pela casuística. É obrigatória a sua adesão a standards e normas de boa prática clinica e administrativa, bem como a uma constante avaliação do seu funcionamento como Centro de Trauma. Os diferentes pontos da rede, os Centros de Trauma, deverão estar, idealmente, a menos de 30 minutos de qualquer local de ocorrência na sua área. Em alternativa, o serviço pré-hospitalar deverá acorrer a esse local no mesmo tempo. Já a distância entre dois pontos da rede deverá ser no máximo de 2 horas.
Os Centros de Trauma são classificados de acordo com as suas capacidades em: Nível 1. centro que dispõe de todas as valências, deverá receber mais de 250 doentes com ISS superior a 15 por ano;
Nível 2. centro com capacidade cirúrgica (Cirurgia Geral e Ortopedia), devendo existir protocolos entre estes e os de nível 1 para as transferências necessárias e Nível 3. centros de atendimento básico.
Introduzem-se, aqui, dois conceitos novos: o de ISS e o de nível de atendimento. ISS refere-se ao Injury Severity Score que, embora com algumas falhas em termos de classificação lesional, é o score mais usado para uniformizar critérios e avaliar os Centros de Trauma quanto à sua capacidade de execução e casuística. Já os níveis de atendimento referem-se a real capacidade do centro dentro do sistema. Os recursos serão distribuídos com base nesta classificação. Assim, os centros de nível 3, os mais básicos, poderiam, na nossa realidade, ser Centros de Saúde apetrechados com sala de recepção de agudos. A equipe mínima é constituída por um médico, um enfermeiro e um auxiliar. Os centros de nível 2 poderão ser representados por Hospitais com capacidade cirúrgica, não centrais. Aqui, a equipe já deve incluir um Cirurgião, Intensivista, um Anestesista e um Ortopedista, além do mínimo já aludido. Os centros de nível 3, o mais elevado, os clássicos Hospitais Centrais ou Universitários, dispõe de 2 equipes, uma executiva, que tem de incluir obrigatoriamente os já referidos anteriormente acrescido de um Neurocirurgião, um Imagiologista e um 2º enfermeiro. A equipe consultiva é constituída por todo e qualquer profissional que possa ser necessário durante o tratamento e gestão do doente vitima de trauma (Cirurgia Plástica, Cirurgia  Maxilo-facial, Cirurgia, Vascular, Gastroenterologia, Pneumologia, Medicina Física e Reabilitação, Psiquiatria, Cirurgia Cardio-torácica, etc.). A equipe deve primar pelo rigor e conhecimento cientifico, ser diligente no tratamento dos seus doentes e ser capaz de funcionar como uma equipe coesa. O Team Leader, peça fundamental neste jogo, tem de ter a noção de que o trabalho é de risco e tem de ser capaz de tomar decisões difíceis e rapidamente. Tem de ser um médico experiente, disponível e com uma bagagem cientifica apropriada. Na minha opinião, esta figura central tem de ser um Cirurgião. O conhecimento sobre a fisiologia do doente e da fisiopatologia do trauma faz do Cirurgião Geral a pessoa ideal para coordenar uma equipa tão díspar de elementos, muitos deles afastados dos meandros da urgência e por isso pouco conhecedores das alterações agudas próprias deste tipo de vitimas. Sem conhecer essas alterações e suas consequências para o prognóstico, é impossível tomar decisões de forma adequada. É fundamental que esta equipe conheça, e idealmente tenha formação, em suporte avançado de vida em trauma.

A integração da sala de atendimento ao trauma dentro de cada centro é dependente dos recursos disponíveis. Actualmente fala-se muito nas salas híbridas, com capacidade de atendimento primário, cirurgia e até imagiologia. A sala de atendimento ao trauma, ou sala de emergência, ou sala de reanimação, ou sala zero (muitas designações ao longo deste país tão pequeno) serve para conduzir a recepção, a reanimação e optimização do doente, permitindo a sua transferência para o local onde serão providenciados os cuidados definitivos de forma segura. É mandatória a existência de linhas de orientação de funcionalidade com áreas ou entidades afins, no sentido de maximizar a eficácia, a qualidade e a rapidez de atendimento:
- com o pré-hospitalar: INEM, Bombeiros, etc.
- com a orientação inter-hospitalar: equipas de diferentes hospitais, CODU, etc.
- com a equipe de trabalho hospitalar: imagiologia, bloco, laboratório, cuidados intensivos, etc.


  
Por fim, a reabilitação. O objectivo final deste empreendimento não deve ser, em exclusivo, manter o doente vivo. Isso não é suficiente. Devemos pugnar por devolver o indivíduo vitima de trauma plenamente apto para o regresso à vida em sociedade. Viver e ser produtivo. Muitas vezes, para familiares e próximos, a sobrevida é a principal preocupação. Para a sociedade em geral isso não chega. Os encargos com doentes incapacitados é elevado e custa a todos nós. Se for possível recuperá-los, torná-los úteis de novo, esse deve ser o objectivo. Evidentemente que esse objectivo deve ser cumprido de forma progressiva, passo a passo. Mas deve estar no horizonte desde o primeiro dia. A recuperação do doente pode ser dividida em 3 processos distintos: a recuperação anatómica, com auxilio da cirurgia nas suas diversas vertentes, a funcional, com apoio dos centros de reabilitação física e também a psicológica, em programas de apoio psiquiátrico e psicológico. O apoio psiquiátrico assume um papel importante, quer do ponto de vista preventivo, na recuperação dos doentes alcoólicos, por exemplo, quer terapêutico, já que muitos destes doentes vêem a sofrer de psicopatologia, alguns na forma de síndrome de stress pós-trauma, que os incapacita para o resto das suas vidas.

Haverá, com certeza, inúmeros aspectos ligados ao trauma e aos cuidados integrados que não foram aqui referidos. É um tema vasto e em constante evolução. Em Portugal a sua aplicabilidade está dependente de factores ligados à gestão e à administração, difíceis de ultrapassar apesar dos esforços realizados por muitos profissionais de saúde empenhados na mudança. O trauma, felizmente, não é uma epidemia no nosso país e temos lidado com as situações com qualidade. Mas há lugar para melhorar. E é para as situações menos frequentes que é mais necessário haver protocolos de actuação, para que quando surjam, nada falhe...

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