quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Capítulo 12: A perspectiva moderna do trauma esplénico

No trauma fechado, ou contuso, a lesão esplénica é a mais frequente dos órgãos sólidos abdominais. Não se prenderá, a razão, com a exposição do órgão mas, talvez, com a sua fragilidade. A mortalidade associada ao trauma do baço é baixa (1 a 3%) e, a maioria das vezes relacionada com lesões concomitantes de outras localizações (sobretudo o TCE).

Nos últimos anos muito pouco se tem avançado no diagnóstico e tratamento da lesão esplénica. Na verdade, há pouco a dizer de novo sobre este assunto. Após a introdução do tratamento conservador, raros são os baços operados, para infelicidade dos internos de especialidade. Contudo, mantém-se 2 indicações cirúrgicas major: a presença de instabilidade hemodinâmica e a coexistência de sinais de peritonite.

A primeira série publicada versando sobre o tratamento conservador foi do Toronto's Hospital for sick children, em 1968. Rapidamente o paradigma mudou para as crianças, justificando-se com as diferenças anatómicas entre o baço destes doentes e dos doentes adultos e, sobretudo, por nas crianças o baço ser mais consistente e com uma cápsula mais dura, resistindo melhor ao trauma ou às suas complicações. Apesar disso, o tratamento conservador (NOM - non-operative management) foi tentado no adulto e com sucesso reprodutível. Uma revisão multi-institucional da EAST (Eastern Association for the surgery of trauma) identificou em 2011 uma taxa de NOM de 77% nos EUA. O paradigma foi mudando ao longo dos anos 90, com inicio no final da década de 80 do século passado.

Uma revisão de 5 anos efectuada no Serviço de Cirurgia 1 do CHTV, entre 2004 e 2009, identificou 50% de doentes tratados conservadoramente com uma taxa de sucesso de 76%.

Porquê NOM? Porque operar os doentes é perigoso. Evitar as complicações operatórias pode justificar a utilização de uma outra metodologia, desde que segura. Além da mortalidade operatória inerente a qualquer intervenção e a possibilidade de hemorragia pós-operatória, os doentes submetidos a esplenectomia podem sofrer episódios de tromboembolismo venoso, trombocitose e OPSI (overwhelming post operatory sepsis), esta última com uma mortalidade elevadíssima.
O NOM falha em 4 a 38% dos casos e em 90% falha nos primeiros 4 dias.

A opção por NOM tem de ser programada. Não pode ser tomada de ânimo leve. É obrigatório o cumprimento das seguintes premissas:
- Doente com estabilidade hemodinâmica
- Possível a classificação por TC
- Ausência de indicação cirúrgica por outro motivo
- Necessidade de produtos transfusionais inferior 2 UCE
- Hospital com capacidade cirúrgica e de monitorização

A questão da estabilidade hemodinâmica é pertinente. Muito frequentemente usamos essa expressão na prática clinica, mas nem sempre da forma adequada. O Professor Michael Sugrue, que muitos de vós conhecerão de nome ou dos congressos, costuma dizer que "in Ireland, stable is the place where we put the horses..." ilustrando bem como a expressão se tornou habitual no léxico médico e de forma pouco rigorosa.
A objectivação da estabilidade hemodinâmica pode ser conseguida através da utilização de scores. A WTA (Western Trauma Association) utiliza um score que me parece simples e facilmente reprodutível:

Grade 0: No significant hypotension (systolic blood pressure < 90 mm Hg) or serious tachycardia (heart rate > 130 beats/minute)

Grade 1: Hypotension or tachycardia by report but not reported in the emergency department

Grade 2: Hypotension or tachycardia responsive to initial volume loading with no ongoing fluid or pRBC requirement

Grade 3: Hypotension or tachycardia responsive to initial volume loads with modest ongoing fluid (<250 mL/hr) or pRBC transfusion

Grade 4: Hypotension or tachycardia only responsive to more than 2 liters of volume loading and the need for vigorous ongoing fluid infusion (>250 mL/hr) and pRBC transfusion

Grade 5: Hypotension unresponsive to fluid and pRBC transfusion

Moore FA, Davis JW, Moore Jr. EE, Cocanour CS et al
Western Trauma Association (WTA) Critical Decisions in Trauma: Management of Adult Blunt Splenic Trauma, JTrauma 65:1007 2008

A instabilidade define-se, neste score, como o doente que apresenta os graus 4 ou 5.

A severidade da lesão é importante e é fácil aceitar que a falência do NOM está relacionada com o grau de lesão. Tem sido utilizada um classificação guiada por TC. Esta é baseada numa classificação anatómica antiga (Moore et al.) e que não tem correspondência directa com as imagens da TC. Contudo, será bastante aproximada e tem sido utilizada como sendo equivalente e até foi incorporada na classificação ISS.



Moore EE, Cogbill TH, Malangoni M, Jurkovich GJ, Champion HR
Scaling system for organ specific injuries
http://www.aast.org/Library/TraumaTools/InjuryScoringScales.aspx#spleen

A correspondência da taxa de falência do NOM com o grau de lesão é directa: 5% para o grau I; 10% para grau II; 20% para grau III; 33% para grau IV e 75% para grau V.

Para alguns autores, o volume de hemoperitoneu, medido em ecografia ou TC, é um factor a ter em consideração na decisão de iniciar NOM. Assim como a presença de algumas alterações de natureza vascular, na TC. A presença de extravasamento de contraste, blush arterial ou fistula arteriovenosa pode pesar contra o NOM. Isto significa que é obrigatória a caracterização das lesões por TC à entrada.

Alguns outros factores que poderão ser considerados contra-indicação para NOM são a idade avançada (qual? não há consenso), a presença concomitante de lesão traumática intra-craniana, um ISS (Injury Severity Score) superior a 25 e necessidades transfusionais mantidas (após 5 UCE ou 2 UCE?).

Um aspecto importante é o da monitorização. Um Hospital onde se pretende fazer NOM tem de ter essa capacidade. A literatura é unânime em considerar necessária a monitorização continua dos sinais vitais durante 3 dias, com avaliação da Hemoglobina de 6/6 horas. A repetição da TC às 48 horas pode justificar-se pelos 6% de lesões que surgem tardiamente. 

A profilaxia do tromboembolismo venoso é obrigatório, sendo instituído NOM ou não. Ressalvando as respectivas contra-indicações, claro.

Outra questão pertinente é a da retoma da actividade física. Ninguém sabe como proceder. Existem recomendações, mas não pode dizer-se que são baseadas em dados concretos, pois não existem estudos. Porém, arriscaria sugerir o seguinte esquema:

Grau I-II:
Evitar esforços físicos e desporto 6 semanas
Evitar trabalho pesado 6 a 8 semanas
Iniciar actividades domésticas após 2 semanas
Grau ≥III :
Actividade mínima 1 semana
Actividade ligeira 4 a 8 semanas;
Evitar esforços físicos e desporto 6 semanas
Evitar trabalho pesado 10 a 12 semanas
Grau IV, V:
Evitar esforços físicos e desporto 3 meses

A angioembolização assume no NOM um papel importante, podendo ser um adjuvante na redução da falência do tratamento médico, sobretudo em circunstâncias especificas. É o caso das lesões grau IV e V, dos doentes com hemoperitoneu moderado (e como definir isto?) e na presença das anomalias vasculares anteriormente descritas, identificadas na TC. Alguns algoritmos incluem a angioembolização como passo antes da cirurgia e, por vezes, em sua substituição. No entanto, a angioembolização também pode falhar (em 5 a 9% dos casos) e não é isenta de complicações (19 a 28%) que podem reduzir-se se se optar por embolizações mais distais. O abcesso esplénico, o enfarte esplénico extenso, o derrame pleural, a lesão vascular no local do acesso e a hemorragia recorrente são algumas das complicações possíveis, as mais frequentes. Não obstante, a angiografia pode elevar o sucesso do NOM até aos 97%...
Não se conhece o efeito, ou melhor, o prejuízo imunológico produzido pela angioembolização, pelo que se recomenda vacinar de igual forma aos doentes operados.
É interessante notar que alguns autores acreditam que no traumatismo esplénico isolado, a angiografia pode substituir a cirurgia, mesmo em doentes hemodinamicamente instáveis. Para desmistificar a questão relacionada com o tempo (mais rapidamente se opera...), Olthof et al. comparou o intervalo de tempo entre a entrada do doente e a chegada à suite de angio versus Bloco operatório e não verificou diferenças de relevo. Aliás, as diferenças existentes favoreciam a angiografia. Temos de convir que se trata de realidades muito dispares das nossas. 

Até há pouco tempo, nos anos 1990, esteve muito em voga a chamada cirurgia conservadora de baço. A esplenorrafia, a esplenectomia parcial e a utilização de redes ainda surgem nos manuais cirúrgicos e mesmo nos de cirurgia de trauma. Quanto a mim, esta questão está ultrapassada e essas técnicas devem ser remetidas em exclusivo para a cirurgia de rotina. É que  as cirurgias conservadoras de baço eram efectuadas em doentes que hoje não são operados, são tratados conservadoramente.

Quanto à laparoscopia?
Segundo a SAGES, são consideradas indicações para a laparoscopia no trauma, no doente hemodinamicamente estável:
- Lesão abdominal suspeita (fechada ou penetrante)
- Trauma Abdominal penetrante com arma branca com penetração da cavidade duvidosa ou estabelecida
- Trauma Abdominal penetrante com arma de fogo com trajecto intra-peritoneal duvidoso
- Lesão diafragmática por trauma penetrante
E são consideradas contra-indicações:
- Instabilidade hemodinâmica
- Indicação para laparotomia (peritonite, choque, evisceração)
- Lesão abdominal óbvia ou conhecida
- Limitada aptidão laparoscópica
Portanto, doentes estáveis com trauma abdominal fechado podem ser submetidos a laparoscopia diagnóstica para excluir lesões relevantes. No entanto, alguns autores pretendem ir um pouco mais longe, apesar da escassez de dados clínicos que o suportem. Poderá ser um aspecto a desenvolver no futuro.






S. Sauerland, F. Agresta,  R. Bergamaschi,  G. Borzellino,  et al
Laparoscopy for abdominal emergencies
Evidence-based guidelines of the European Association for Endoscopic Surgery
SurgEndosc 20: 14, 2006

Assim, actualmente o tratamento standard é o NOM. Há um papel óbvio para a angiografia com melhoria aparente dos resultados. Porém, restam dúvidas sobre aspectos básicos da nossa conduta, como sejam a intensidade e duração da monitorização e a intensidade e duração da restrição da actividade física. Tendo em conta a actuação presente e as tendências actuais, deverá ser difícil realizar estudos que nos mostrem o que fazer e modificar as atitudes que hoje tomamos.


terça-feira, 2 de agosto de 2016

Capítulo 11: Hematoma espontâneo

Em 2013 fui convidado para falar sobre este tema em Lyon, no Congresso da ESTES. Achei um disparate haver uma keynote lecture sobre um tema tão obscuro. E raro, achava eu. Mas aceitei o desafio. E o que descobri foi, deveras, surpreendente. Não só não é assim tão raro, como o seu manuseamento não é fácil, nem consensual. Havendo tantas possibilidades relacionadas com hematomas espontâneos, optei por me cingir a uma área mais ligada à Cirurgia Geral, o hematoma espontâneo abdominal extra-peritoneal.

A primeira coisa que descobri é que raras vezes ele é verdadeiramente espontâneo. Se procurarmos bem, quase sempre conseguimos encontrar uma causa predisponente. Nestes casos, excluem-se sempre os de origem traumática. Os factores de risco mais frequentemente associados são: idade avançada, hipertensão, doença cardíaca, aterosclerose, doença renal, gravidez e discrasias sanguíneas. Infelizmente, nos dias de hoje, começam a surgir outros factores de risco, importantes pela gravidade dos hematomas a eles associados. Refiro-me à utilização de anticoagulantes orais, antiagregantes plaquetares e heparina, não fraccionada e de baixo peso molecular.
Além destes factores, ditos de risco, existem factores precipitantes. Estes podem ser definidos como um esforço físico de grandeza variada, mas passível de produzir disrupção vascular e hemorragia. São exemplos a tosse, o espirro ou uma outra contracção muscular vigorosa. E sim, o sexo também.
Os verdadeiramente espontâneos seriam aqueles em que nenhum destes factores, de risco ou precipitantes, fosse identificado. Isso acontece em cerca de 8% dos casos, o que, como compreendem, é pouco habitual. E o facto de não se ter encontrado, não quer dizer que não exista, certo?

Não se sabe bem porquê nem como, mas a hemorragia é multifocal. Vários factores foram apontados para este achado, mas a contribuição individual de cada um é desconhecida. Diversos autores referem a existência de arteriosclerose difusa de pequenos vasos, microangiopatia (esta associada ao uso de heparina), vasculopatia oculta e desconhecida e trauma minor não reconhecido.

O hematoma extra-peritoneal pode surgir na bainha dos músculos rectos do abdómen (o mais frequente) ou no retroperitoneu, quer em estruturas musculares (músculo psoas) ou não (glândula supra-renal). O quadro clínico caracteriza-se por dor e distensão, podendo mesmo identificar-se uma massa abdominal. A presença de equimose superficial é, sempre, um sinal tardio.
A melhor ajuda para chegar ao diagnóstico desta situação é ter tido experiência prévia de um caso. Raramente sem pensa nesta possibilidade e, habitualmente, gasta-se uma bateria de exames para excluir múltiplas outras situações mórbidas, sendo o diagnóstico final um achado imagiológico. Por isso, o diagnóstico diferencial é muito extenso... Inclui basicamente tudo o que pode cursar com dor abdominal.
A ecografia e a TC são os exames que mais ajudam. O primeiro no despiste e o segundo na caracterização. Infelizmente, a TC nem sempre é realizada com esta suspeita e os tempos relativamente à administração de contraste podem não ser as melhores para uma boa caracterização da lesão e, sobretudo, da hemorragia presente. Este é um dos aspectos mais importantes e que pode ser determinante na escolha do tratamento mais adequado. A presença de hemorragia activa ou de sinais de potencial de hemorragia continuada são fundamentais.

O tratamento inicial é conservador. Isto significa internamento, repouso no leito, gelo local, analgesia, reversão da anticoagulação caso exista, transfusão se necessário e monitorização. Em cerca de 80% dos casos não é necessário mais do que isso. Porém, esta atitude associa-se com internamento prolongado, em média, 20 dias. 
Existem 5 circunstâncias que obrigam a uma atitude diferente:
- A presença de instabilidade hemodinâmica
- A presença de dor incapacitante não controlável
- A necessidade continuada de produtos de transfusão
- A presença de uma síndrome de compartimento e
- O desenvolvimento de infecção

Na presença de sinais de instabilidade hemodinâmica, motivada pela hemorragia continuada de um volume sanguíneo significativo, podemos optar por cirurgia ou angiografia. A velha discussão sobre quem tem angiografia e/ou não, é importante, mas fora do âmbito deste texto. Quem  não tem angiografia, tem de operar. A cirurgia consiste na evacuação do hematoma e na sutura e laqueação dos vasos sangrantes (vasos... plural). Os poucos estudos que existem sobre angioembolização apontam para uma taxa de sucesso próxima dos 100%, com uma mortalidade de 0%. Porém, são poucos e não há estudos comparativos com a cirurgia. De acrescentar que todos eles referem a necessidade de TC prévia para guiar a superselectividade do procedimento, caso contrário a morbilidade pode ser demasiado elevada (necrose muscular extensa). Não são, no entanto, de desprezar as vantagens óbvias sobre a cirurgia: a invasibilidade mínima e a taxa elevada de sucesso (98%).

O tratamento da dor não controlável é cirúrgico - evacuar e laquear. A dor mantida é usualmente causada pelo aumento progressivo, gradual e lento, da pressão dentro do hematoma por hemorragia continuada de baixo débito. Há algumas descrições de aspiração percutânea, mas associada a um elevado risco de infecção e de evacuação incompleta, pelo que não deve ser utilizada.

Em caso de necessidade continuada de produtos de transfusão, deve realizar-se uma angioTC. Se existe blush arterial, o tratamento de escolha é a angioembolização. Caso não exista, o tratamento deverá ser a evacuação cirúrgica e a laqueação dos vasos sangrantes.

A síndrome de compartimento pode manifestar-se de 3 formas distintas, dependendo do compartimento envolvido. Em caso de síndrome de compartimento abdominal, o tratamento é a laparostomia, acabando por se evacuar e laquear, à semelhança do que já foi referido. A síndrome compartimental pode, também, manifestar-se como défice neurológico. A opção por descompressão cirúrgica precoce leva a melhores resultados funcionais e a uma recuperação mais rápida. No entanto, há autores que defendem o tratamento conservador por medo das complicações da cirurgia. Esta opção leva a uma recuperação tardia e, habitualmente, incompleta. Por fim, o défice vascular, manifestado nos membros inferiores, necessita de descompressão cirúrgica precoce e, muitas vezes, fasciotomia. 

A infecção é, na maioria dos casos, iatrogénica. Muitas vezes é difícil resistir puncionar estas colecções e este é o preço a pagar. E pode ser um preço muito elevado. O desenvolvimento de um abcesso necessita de um desbridamento amplo, tratamento sistémico com antibióticos de largo espectro e "rezar" para que não se desenvolva uma fasceíte que pode culminar na morte do doente.

Em Conclusão
Trata-se de uma entidade rara mas com uma frequência crescente, paralela ao crescimento da utilização de fármacos com efeito na coagulação e na trombose. É de muito difícil diagnóstico, sendo habitualmente identificada imagiologicamente quando se procura outra causa para os sintomas. A abordagem destes doentes deve ser multidisciplinar (está na moda) e iniciar-se pelo tratamento conservador e avançar para tratamentos mais invasivos nos casos indicados.