terça-feira, 2 de agosto de 2016

Capítulo 11: Hematoma espontâneo

Em 2013 fui convidado para falar sobre este tema em Lyon, no Congresso da ESTES. Achei um disparate haver uma keynote lecture sobre um tema tão obscuro. E raro, achava eu. Mas aceitei o desafio. E o que descobri foi, deveras, surpreendente. Não só não é assim tão raro, como o seu manuseamento não é fácil, nem consensual. Havendo tantas possibilidades relacionadas com hematomas espontâneos, optei por me cingir a uma área mais ligada à Cirurgia Geral, o hematoma espontâneo abdominal extra-peritoneal.

A primeira coisa que descobri é que raras vezes ele é verdadeiramente espontâneo. Se procurarmos bem, quase sempre conseguimos encontrar uma causa predisponente. Nestes casos, excluem-se sempre os de origem traumática. Os factores de risco mais frequentemente associados são: idade avançada, hipertensão, doença cardíaca, aterosclerose, doença renal, gravidez e discrasias sanguíneas. Infelizmente, nos dias de hoje, começam a surgir outros factores de risco, importantes pela gravidade dos hematomas a eles associados. Refiro-me à utilização de anticoagulantes orais, antiagregantes plaquetares e heparina, não fraccionada e de baixo peso molecular.
Além destes factores, ditos de risco, existem factores precipitantes. Estes podem ser definidos como um esforço físico de grandeza variada, mas passível de produzir disrupção vascular e hemorragia. São exemplos a tosse, o espirro ou uma outra contracção muscular vigorosa. E sim, o sexo também.
Os verdadeiramente espontâneos seriam aqueles em que nenhum destes factores, de risco ou precipitantes, fosse identificado. Isso acontece em cerca de 8% dos casos, o que, como compreendem, é pouco habitual. E o facto de não se ter encontrado, não quer dizer que não exista, certo?

Não se sabe bem porquê nem como, mas a hemorragia é multifocal. Vários factores foram apontados para este achado, mas a contribuição individual de cada um é desconhecida. Diversos autores referem a existência de arteriosclerose difusa de pequenos vasos, microangiopatia (esta associada ao uso de heparina), vasculopatia oculta e desconhecida e trauma minor não reconhecido.

O hematoma extra-peritoneal pode surgir na bainha dos músculos rectos do abdómen (o mais frequente) ou no retroperitoneu, quer em estruturas musculares (músculo psoas) ou não (glândula supra-renal). O quadro clínico caracteriza-se por dor e distensão, podendo mesmo identificar-se uma massa abdominal. A presença de equimose superficial é, sempre, um sinal tardio.
A melhor ajuda para chegar ao diagnóstico desta situação é ter tido experiência prévia de um caso. Raramente sem pensa nesta possibilidade e, habitualmente, gasta-se uma bateria de exames para excluir múltiplas outras situações mórbidas, sendo o diagnóstico final um achado imagiológico. Por isso, o diagnóstico diferencial é muito extenso... Inclui basicamente tudo o que pode cursar com dor abdominal.
A ecografia e a TC são os exames que mais ajudam. O primeiro no despiste e o segundo na caracterização. Infelizmente, a TC nem sempre é realizada com esta suspeita e os tempos relativamente à administração de contraste podem não ser as melhores para uma boa caracterização da lesão e, sobretudo, da hemorragia presente. Este é um dos aspectos mais importantes e que pode ser determinante na escolha do tratamento mais adequado. A presença de hemorragia activa ou de sinais de potencial de hemorragia continuada são fundamentais.

O tratamento inicial é conservador. Isto significa internamento, repouso no leito, gelo local, analgesia, reversão da anticoagulação caso exista, transfusão se necessário e monitorização. Em cerca de 80% dos casos não é necessário mais do que isso. Porém, esta atitude associa-se com internamento prolongado, em média, 20 dias. 
Existem 5 circunstâncias que obrigam a uma atitude diferente:
- A presença de instabilidade hemodinâmica
- A presença de dor incapacitante não controlável
- A necessidade continuada de produtos de transfusão
- A presença de uma síndrome de compartimento e
- O desenvolvimento de infecção

Na presença de sinais de instabilidade hemodinâmica, motivada pela hemorragia continuada de um volume sanguíneo significativo, podemos optar por cirurgia ou angiografia. A velha discussão sobre quem tem angiografia e/ou não, é importante, mas fora do âmbito deste texto. Quem  não tem angiografia, tem de operar. A cirurgia consiste na evacuação do hematoma e na sutura e laqueação dos vasos sangrantes (vasos... plural). Os poucos estudos que existem sobre angioembolização apontam para uma taxa de sucesso próxima dos 100%, com uma mortalidade de 0%. Porém, são poucos e não há estudos comparativos com a cirurgia. De acrescentar que todos eles referem a necessidade de TC prévia para guiar a superselectividade do procedimento, caso contrário a morbilidade pode ser demasiado elevada (necrose muscular extensa). Não são, no entanto, de desprezar as vantagens óbvias sobre a cirurgia: a invasibilidade mínima e a taxa elevada de sucesso (98%).

O tratamento da dor não controlável é cirúrgico - evacuar e laquear. A dor mantida é usualmente causada pelo aumento progressivo, gradual e lento, da pressão dentro do hematoma por hemorragia continuada de baixo débito. Há algumas descrições de aspiração percutânea, mas associada a um elevado risco de infecção e de evacuação incompleta, pelo que não deve ser utilizada.

Em caso de necessidade continuada de produtos de transfusão, deve realizar-se uma angioTC. Se existe blush arterial, o tratamento de escolha é a angioembolização. Caso não exista, o tratamento deverá ser a evacuação cirúrgica e a laqueação dos vasos sangrantes.

A síndrome de compartimento pode manifestar-se de 3 formas distintas, dependendo do compartimento envolvido. Em caso de síndrome de compartimento abdominal, o tratamento é a laparostomia, acabando por se evacuar e laquear, à semelhança do que já foi referido. A síndrome compartimental pode, também, manifestar-se como défice neurológico. A opção por descompressão cirúrgica precoce leva a melhores resultados funcionais e a uma recuperação mais rápida. No entanto, há autores que defendem o tratamento conservador por medo das complicações da cirurgia. Esta opção leva a uma recuperação tardia e, habitualmente, incompleta. Por fim, o défice vascular, manifestado nos membros inferiores, necessita de descompressão cirúrgica precoce e, muitas vezes, fasciotomia. 

A infecção é, na maioria dos casos, iatrogénica. Muitas vezes é difícil resistir puncionar estas colecções e este é o preço a pagar. E pode ser um preço muito elevado. O desenvolvimento de um abcesso necessita de um desbridamento amplo, tratamento sistémico com antibióticos de largo espectro e "rezar" para que não se desenvolva uma fasceíte que pode culminar na morte do doente.

Em Conclusão
Trata-se de uma entidade rara mas com uma frequência crescente, paralela ao crescimento da utilização de fármacos com efeito na coagulação e na trombose. É de muito difícil diagnóstico, sendo habitualmente identificada imagiologicamente quando se procura outra causa para os sintomas. A abordagem destes doentes deve ser multidisciplinar (está na moda) e iniciar-se pelo tratamento conservador e avançar para tratamentos mais invasivos nos casos indicados.
















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