quarta-feira, 29 de junho de 2016

Capítulo 5: NOACs, Transfusão Massiva e coisas com sangue em geral - Parte II

Desta vez falamos de Transfusão Massiva.

Em qualquer reunião a que vá em que falamos sobre este assunto, pergunto sempre quem tem um Protocolo em vigor no seu Hospital e responde positivamente a maioria dos presentes. Porém, quando falamos nos corredores em Off acabo por perceber que nem sempre assim é. Pelo menos, na prática. Por experiência própria, noto haver muita gente que acha que sabe tudo, mas quando chega o momento e no meio do stress, até dificuldade têm em interpretar o fluxograma.

Transfusão refere-se à administração de sangue ou componentes do sangue. O primeiro registo conhecido de uma transfusão bem sucedida, terá sido o de uma transfusão de um cão para outro no século XVII por Richard Lower, médico particular de Carlos II. Ainda nesse século, em junho de 1667, Jean Baptiste Denys, médico de Louis XIV, transfundiu com sangue de caprino um homem, para tratamento da sua demência. Em Novembro do mesmo ano, Richard Lower fez o mesmo em Inglaterra. São os primeiros relatos de transfusões com seres humanos. Apesar dos resultados não terem sido completamente desastrosos, o doente de Lower sobreviveu, a transfusão humana só iria evoluir após mais de 150 anos… em 1818 com James Blundell.

Quase dois séculos depois falamos de Transfusão Massiva (tem havido alguma confusão relativamente ao termo a utilizar, se massiva ou maciça. Na minha opinião, e segundo os dicionários da lingua portuguesa que pude consultar, são termos diferentes e designam características diferentes. Assim, maciço é algo que não é oco, é compacto. A nossa designação de Transfusão Maciça vem do inglês e foi traduzida directamente. No entanto, a utilização no anglo-saxónico de massive, refere-se a algo de grandes dimensões, volumoso. Mais de acordo com o conceito de Transfusão Massiva, este termo é relativo a massas, a um grande número de pessoas ou que ocorre em grande quantidade. Por isso, o termo adequado deverá ser Transfusão Massiva que vou designar daqui em diante como TM.

A TM refere-se a uma reposição sanguínea de grande volume, habitualmente definida como sendo de 10 ou mais UCE nas 24 horas. Este conceito, embora correcto, implica um intervalo de tempo longo, pouco adaptável a situações de perda rápida de sangue, que os doentes que necessitam de TM habitualmente sofrem. Por isso, surgiu uma definição mais curta que implica a reposição superior a 5 UCE em 3 horas. Mas há mais... 

Definições de "massive blood loss"



Os doentes mais vulgarmente envolvidos neste tipo de catástrofe são os doentes com aneurisma da aorta, submetidos a transplante, com hemorragia digestiva, com hemorragias obstétricas e vitimas de trauma. Cerca de 10% dos doentes vitimas de trauma vão necessitar de algum tipo de transfusão e destes, 3% requerem uma TM. Se incluirmos só os doentes que entram nos Serviços de Urgência em choque, 24% vão necessitar de TM. Quase metade dos doentes que morrem por trauma morrem por exsanguinação. A transfusão de produtos sanguíneos reduz a mortalidade de forma significativa (quase 45%).

Perante um hemorragia massiva, a estratégia clássica passava pelo controlo da hemorragia e a reposição de volume com cristalóides e produtos sanguíneos. Esta estratégia visava a obtenção rápida da normovolémia, acreditando-se que seria essa a variável que levaria à homeostase. Lembro-me muito bem de ter lido no Schwartz (em 1990) uma experiência de ressuscitação, com melhores resultados quando se usava cristalóides associados ao concentrado de eritrócitos, em ratos. Boas noticias para os ratos. Também me lembro de, em 2009, assistir a palestras do Professor Mattox em Antalya (10th ECTES) em que ele afirmava que estávamos todos loucos porque ressuscitávamos os nossos doentes com água e sal. Achámos que o louco era ele...
Poucos anos depois percebemos que a estratégia que hoje consideramos clássica produzia edema por hiperhidratação, com risco de ARDS, Síndrome de Compartimento Abdominal e outras alterações celulares que culminavam no agravamento da coagulopatia e aumento da mortalidade.
A tríade da morte (acidose, hipotermia e coagulopatia) é o maior inimigo do doente e evitá-la a todo custo tem de ser o nosso objectivo primário. Mas, sabemos agora, um terço dos doentes vitimas de trauma grave chega coagulopático ao Hospital, colocando problemas adicionais. É impossível tratar o doente antes deste sofrer a agressão. Mas é possível travar o consumo e a diluição dos factores de coagulação, reduzir a actividade inflamatória e hormonal que desenvolvem as alterações patológicas associadas parando a hemorragia, tratando a hipóxia e a acidose, evitando a hipotermia e dando ao doente factores sanguíneos que prevemos necessários. 

A estratégia de controlo de danos aplicada à ressuscitação é a base em que se sustenta a TM. Por não conhecermos o doente, porque ele se apresenta em desequilíbrio, porque a avaliação desse estado é demorada e porque não se pode perder tempo, vamos fornecer ao doente aquilo que é necessário para regressar ao equilíbrio. Empiricamente.

O Protocolo de TM integra a estratégia de controlo de dano e nessa sequência, deve ser activado precocemente. Existem vários sistemas de classificação que permitem prever a necessidade de TM e estes devem ser usados para justificar a sua activação. Dos mais usados, o ABC, utiliza apenas dados de obtenção rápida como a tensão arterial (doente em choque), a frequência cardíaca, a história de trauma penetrante e a positividade do FAST. Uma vez activado, o fornecimento de produtos sanguíneos deve ser expedito e numa proporção favorável. Este conceito é muito controverso e a proporção ideal é desconhecida. Actualmente há uma tendência para a aproximação ao sangue total, com uma proporção de 1:1:1. Há estudos, no entanto, que referem ser importante ter uma proporção para servir de objectivo a atingir, para que os produtos sejam fornecidos em tempo útil. Isso parece ser mais importante do que a proporção propriamente dita.
Portanto: fornecer eritrócitos, para o transporte do oxigénio e plasma e plaquetas, para combater a coagulopatia. 
Além disso, os estudos favorecem a utilização de ácido tranexâmico (CRASH-2). Acredita-se que a coagulopatia associada ao trauma se inicia como um estado de hiperfibrinólise. A administração de ATX, um fármaco anti-fibrinolítico pode ser útil, se administrado cedo após o trauma. Apesar de aparecer em algumas publicações a utilização de ácido eta-aminocapróico como substituto do ATX, não existe na literatura nenhum suporte cientifico para o efeito. Existe um meta-análise da Cochrane que o refere mas sem apresentar nenhum estudo que o suporte. Mesmo em relação ao ATX, o seu beneficio é marginal, no entanto, é recomendado.
O Protocolo deve ser flexível e permitir controlo laboratorial. Fala-se muito do ROTEM que para a maioria de nós é ficção cientifica. Mas o controlo da coagulação e a administração de fibrinogénio e concentrado protrombínico podem ser importantes.
É óbvio que um terapêutica desta agressividade não é isenta de complicações. Reacções transfusionais, lesões pulmonares, transmissão de doenças e alterações hidroelectroliticas são apenas alguns exemplos. Por esse motivo, o Protocolo de TM deve ser abortado logo que a situação esteja controlada. 

No final, com o PTM conseguimos:
- Administração de ratios apropriados de produtos sanguíneos em tempo útil
- Reduzir a taxa de SCA e de abdómen aberto
- Reduzir a taxa de complicações sépticas, nomeadamente pneumonia
- Reduzir a taxa de Falência Orgânica Múltipla
- Reduzir a estadia hospitalar
- Reduzir a mortalidade
- Poupar dinheiro

A estratégia clássica apresentava, entre os anos 70 e 90, uma taxa de mortalidade variável entre 60 a 90%. A estratégia de controlo de dano reduziu, em menos de 20 anos, a taxa de mortalidade para valores máximos próximos dos 30%, sendo um factor independente preditor de sobrevivência.

O PTM encontra-se legislado desde 2013 com a Norma da DGS 011/2013 que estabelece as indicações para a sua execução e fornece um fluxograma de fácil compreensão e utilização. Não é perfeito, mas é um Protocolo e deve ser usado, tendo de ser adaptado ao local em que se usa. Os PTM são instrumentos institucionais que melhoram a comunicação, a disponibilidade e o tempo de espera dos produtos sanguíneos e, com isso, baixam significativamente a mortalidade.




terça-feira, 28 de junho de 2016

Capítulo 5: NOACs, Transfusão Massiva e coisas com sangue em geral - Parte I

“the cardiologist’s darling, the intensivist’s headache, and the trauma surgeon’s
nightmare”

Moshe Schein, Paul Rogers, Ari Leppaniemi, Danny Rosin
Schein's common sense prevention and management of surgical complications

É isso mesmo. 
NOACs, ou non vitamin K antagonists oral anticoagulants, despertam emoções diferentes em pessoas diferentes.
O aparecimento dos anticoagulantes orais foi, sem sombra de dúvida, um avanço médico extraordinário, sobretudo para doentes com patologia cardiovascular grave. Mas, não existe bela sem senão... juntamente com as vantagens surgiu um corrupio de complicações hemorrágicas, cuja avaliação, manuseamento e prevenção enchem inúmeros capítulos de manuais médicos. 
A varfarina, utilizada inicialmente, e ainda hoje,  como pesticida (sobretudo para matar ratos...) foi usada com fins médicos pela primeira vez em 1954 e continua a droga anticoagulante mais prescrita nos Estados Unidos hoje. Contudo, exibe um perfil farmacodinâmico pouco amigável, sendo muito influenciado pela alimentação e pela interacção com outros fármacos. O risco de sobredosagem e de subdosagem - muito frequentes - obriga à sua utilização aliada a um controlo laboratorial rigoroso.
Os NOACs são uma nova geração... a geração das calças ao fundo do rabo... para uns o último grito da moda, para outros, uma moda rasca.
O composto BIBR 953, conhecido actualmente como Dabigatrano, foi o primeiro NOAC disponível no mercado, recebendo a aprovação da FDA em 2008. O seu parto não foi eutócico. Há muito que se investigavam potenciais anticoagulantes orais alternativos, mas nenhum mostrou ser tão seguro e eficaz como o Dabigatrano. Recordo-me da fase clinica de outros produtos, com tudo pronto para serem distribuídos no mercado, serem retirados de forma expedita após os ensaios mostrarem alterações hepáticas importantes...
Mas entretanto, chegou o Dabigatrano. Prometia ser mais seguro e igualmente eficaz. Com a sua farmacodinâmica mais previsível, o Dabigatrano não necessita de controlo laboratorial. Atrás deste surgiram o Rivaroxabano e o Apixabano. E há mais a caminho... 
NOACs foi a designação inicial destes fármacos e significava new oral anticoagulants. O problema é que, à medida que a ciência avança, estes deixaram de ser novos. No entanto, o termo NOAC já havia penetrado o suficiente o léxico médico que não era possível removê-lo. Muitas das pesquisas efectuadas eram-no com este termo, pelo que se manteve com um novo significado: non vitamin K antagonists oral anticoagulants
As indicações actuais para estas drogas são muito restritas: fibrilhação auricular não valvular e tratamento e profilaxia da doença tromboembólica (periférica ou pulmonar). O futuro poderá ver surgir mais, mas actualmente apenas estas são aprovadas pelo FDA. Mas a varfarina será ainda utilizada por muito tempo.

O problema é a hemorragia... essa é uma complicação comum a todos os anticoagulantes, orais ou parenterais. Nos estudos, os NOACs revelaram ser mais seguros que os dicumarínicos, mas com uma taxa de complicações hemorrágicas não desprezível. E se existem situações clínicas que cursam com hemorragias espontâneas, imaginem como é quando estes doentes precisam de ser operados. Habitualmente já se trata de doentes idosos com polipatologia e polemicados. Acresce-lhes a morbilidade de tomarem um anticoagulante. Por vezes associado a um antiagregante... como é para resolver este problema?
Em circunstâncias de rotina parece fácil. Se a situação é de risco tromboembólico suficientemente elevado, será necessário fazer "bridging" com heparina de baixo peso molecular. A semi-vida curta dos NOACs permite a sua suspensão 48 horas antes da cirurgia, em segurança. Excepto em doentes com insuficiência renal ou hepática... 
Já na urgência... a coisa é diferente. O doente precisa de ser operado rápido. Como é fácil de perceber, não existem guidelines para a urgência sobre este assunto. Sobre cirurgia de rotina há muito material, mas sobre urgência... Pelo que, a opção será utilizar as guidelines da rotina e adaptá-las ao ambiente mais inesperado do serviço de urgência.
Se o doente precisa de ser operado já, como em casos de sépsis grave e/ou trauma, opera-se já. Se a indicação cirúrgica é a hemorragia, há que reverter a anticoagulação de forma adequada. Activar o Protocolo de Transfusão Massiva (para quem tem) e operar o doente para parar a hemorragia. Se a indicação é sépsis, a literatura recomenda que não seja revertida a anticoagulação, a não ser em caso de hemorragia intra ou pós-operatória moderada a grave.
Se o doente puder esperar, há que saber como tem a coagulação e, se estiver muito alterada, esperar o suficiente para as alterações normalizarem (habitualmente 12 a 24 horas). Podem usar-se os resultados do APTT e do PT.
Há excepções, claro. Os doentes com insuficiência renal, cirrose, medicados com antiagregantes ou com fármacos que competem na metabolização hepática dos NOACs como a Amiodarona, o Verapamilo, a Rifampicina e o Ketoconazol. Entre outros. Nestes caso, talvez seja melhor também reverter. No caso do Dabigatrano o doente pode ser dialisado para eliminar o fármaco do sangue.
A reversão deve ser efectuada com Concentrado Protrombínico (25 a 50 U/kg). Existem outras opções, como o plasma fresco, mas neste aspecto a literatura é unânime. Nada de factor VII activado, é perigoso e não ajuda.

A retoma do NOAC é importante, já que os doentes tomam este medicamento porque têm patologia que os predispõe a fenómenos tromboembólicos. Por isso, há que retomar o NOAC logo que seja possível. Isto significa que, em cirurgias de baixo risco hemorrágico pode ser logo após 12 horas da intervenção. Em caso de cirurgia de elevado risco, há lugar para uma substituição por heparina de baixo peso molecular durante o período crítico e re-iniciar o NOAC logo que possível, sempre 12 horas após a última toma de HBPM.

E sobre NOACs, em resumo, é isto...


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Capítulo 2 - Adenda

As minhas sinceras desculpas, mas vou ter de insistir novamente neste tema. Parece-me que o mindset necessário para a abordagem destas situações não foi devidamente compreendido e mantém-se uma abordagem errada, clássica, com consequências gravosas para todos. Numa época em que sobre todos os assuntos médicos se fala em multidisciplinaridade, isto é inaceitável.
Assim, sem querer colocar os dedos na ferida, vou apenas focar alguns pontos que me parecem essenciais:
1. A fractura pélvica grave não deve ser abordada a titulo individual. Deve ser encarada como uma situação crítica, num doente com trauma muito grave, já que a energia necessária para produzir um distúrbio no conjunto osteotendinoso que é a pélvis é muito alta. A taxa de lesões associadas é importante, sobretudo lesões abdominais, torácicas e cranianas (basicamente tudo, não é?).
2. A fractura da pélvis deve ser encarada como um traumatismo visceral. Quer como trauma de víscera maciça, pelo seu potencial hemorrágico, quer como víscera oca pelo potencial trauma digestivo associado, sobretudo colo-rectal e, como tal, potencial infeccioso/contaminado.
3. A fractura da pélvis é o exemplo perfeito da entidade nosológica com necessidade de abordagem multidisciplinar: cirurgia geral/trauma; ortopedia; imagiologia e imagiologia de intervenção; cuidados intensivos; imunohemoterapia...
4. O packing pré-peritoneal, quando indicado, salva vidas... se pensamos que pode ser preciso, provavelmente tem que ser efectuado. Além de salvar vidas, reduz a necessidade de produtos derivados do sangue, reduz a necessidade de angioembolização, estabiliza o doente para realização de TC que pode ser fundamental, entre outros benefícios. E deve ser efectuada antes da laparotomia e sempre com a pélvis fixa, nem que seja só com um cinto (amarrado à altura dos trocanteres femorais).
5. A osteosíntese precoce, quando indicada, permite reduzir os tempos de internamento e encurtar o tempo de incapacidade. A discussão clínica do caso entre ortopedistas e cirurgiões pode assumir aqui um papel importante.
6. Por fim, é óbvio que nem todas as fracturas da pélvis merecem este tipo de preocupação. Porém, há um grupo que deve alertar os clínicos envolvidos para o seu potencial desenvolvimento de complicações graves: a classificação que me parece mais útil na tomada de decisão é a sugerida por Pol Rommens, em 2010, que propõe quatro tipos de fractura que devem ter uma abordagem multidisciplinar e de tipo de Controlo de Dano: 1. As fracturas em livro aberto – classicamente conhecidas como as que apresentam uma diástase da sínfise púbica superior a 2 cm; 2. As fracturas verticalmente instáveis – associadas a disrupções posteriores do anel pélvico; 3. As fracturas complexas – associadas a lesões orgânicas e 4. As fracturas expostas.

Ok
Tenho dito...

domingo, 26 de junho de 2016

Capitulo 4: Controlo de danos

O Damage Control veio para ficar. De expressão de origem militar, enraizou-se no léxico médico e hoje é, aquilo a que podemos chamar, o estado da arte.
Originalmente, referia-se às manobras mínimas necessárias para manter em navegação um navio vitima de ataque, permitindo-lhe atingir o local onde pudesse ser reparado. Consiste, na essência, a um conjunto de manobras de salvamento incompleto.

A expressão foi adaptada para o universo médico com uma correspondência quase directa. No inicio dos anos 90 surgiu a expressão Damage Control Surgery, cuja adaptação é atribuida a Rotondo e Schwabb, provavelmente os primeiros autores a apresentarem o conceito numa publicação.

Rotondo MF, Schwab CW, McGonigal MD et al. 'Damage Control - an approach for improved survival in exsanguinating penetrating abdminal injury' J Trauma 1993;35:375-382

A constatação de que, uma grande parte dos doentes vitimas de trauma grave, sobretudo penetrante, não sobrevivia após uma reparação cirúrgica anatómica completa das suas lesões, levou a considerar a existência de outros factores envolvidos. A chamada tríada letal, já anteriormente definida por Kenneth Mattox, foi sendo progressivamente melhor entendida e assim como a necessidade da sua correcção precoce. O entendimento da necessidade de tratar para além do órgão, foi crucial para a sobrevivência dos doentes. A morte acontece no Universo microscópico da molécula e da célula. Para impedir esse acontecimento, ao qual não se tem acesso directo, era obrigatório agir rápido. Equilibrar a homeoestase de forma a evitar os desequilíbrios celulares responsáveis pela morte. A falência do ATP e dos processos de troca de energia celular.
O segredo consiste em levar o oxigénio até à célula. Desde o ar (ou a botija) até à célula, preferencialmente à célula cerebral... Se esse circuitos estiver assegurado, assegura-se a sobrevivência do doente. Se não for tarde demais.

A bomba de sódio e potássio é uma proteína da membrana e uma enzima fundamental para o bom funcionamento celular. É a principal responsável pelo gradiente de sódio e potássio existente entre os meios intra e extra celular, sendo este gradiente fundamental para a sobrevivência do organismo e da célula. A bomba contraria a tendência natural para o equilíbrio osmótico entre os dois lados de uma membrana semipermeável. A perda do suprimento do oxigénio leva ao consumo desmesurado de glicose para produzir, de forma pouco rentável, ATP, o combustível neste microuniverso. Em ambiente de stress, em que os mecanismos celulares trabalham para repor a normalidade, o ATP é gasto de forma rápida. Os produtos de degradação anaeróbia da glicose, o piruvato e o lactato, vão aumentando, perturbando ainda mais o equilíbrio ténue da célula. Neste ambiente, se nada for feito que contrarie a tendência, a bomba de sódio e potássio vai deixar de ter ATP para bombear continuamente o sódio para fora e o potássio para dentro da célula. Quando isso acontecer, e o ambiente intra-celular ficar saturado de sódio, a água, que entra livremente na célula, vai causar edema, disfunção dos sistemas celulares e, por fim, morte... O órgão, anatomicamente, vai permanecer com aspecto normal ainda durante algumas horas. Porém, está morto. Toda e qualquer reparação efectuada sobre ele está condenada ao fracasso, e o doente à morte.
Não temos forma fácil de, clinicamente, monitorizar estes acontecimentos. "Macroscopicamente" podemos vigiar os sinais vitais, como a frequência cardíaca, a tensão arterial e a saturação periférica ou "microscopicamente" parâmetros como o pH, o lactato e o excesso de bases. Porém, todos eles são apenas representações grosseiras do que realmente está a acontecer no ambiente celular. Infelizmente, são os melhores que possuímos. Ao longo das últimas décadas tem sido procurado o melhor dos "resuscitation endpoints" sem sucesso. Mas vamos continuar a procurar...
Recentemente surgiram alguns estudos que favorecem a utilização da saturação venosa central, ou seja, a saturação em oxigénio da hemoglobina que deu a volta a todo o organismo, reflectindo a capacidade de extracção e de utilização de oxigénio pela célula, dependente do total de oxigénio que chega à célula (hipóxia, choque) e da capacidade de utilização pela célula (sépsis, morte celular).

O conceito de Controlo de Dano resulta, assim, numa solução empírica e grosseira para um problema que acontece ao nível molecular. Na impossibilidade de resolver a questão à escala em que acontece, tenta-se, macroscopicamente, antecipar e evitar que aconteçam eventos irreversíveis. Por esse motivo, e por não conhecermos, de modo individual, o timing desses eventos, a principal variável deste conceito é o tempo. Tudo neste ambiente é uma corrida contra o tempo...

Inicialmente, a cirurgia de controlo de dano foi aplicada ao abdómen e ao trauma penetrante grave. A pouco e pouco os conceitos foram-se expandindo a outras formas de trauma e a outras localizações. Hoje, o conceito já se encontra difundido a situações de sépsis grave, abdominal e outras. O conceito engloba não só as medidas cirúrgicas, mas também a fase de ressuscitação, podendo ser utilizados meios extraordinários de suporte. É o caso da ressuscitação de controlo de danos. O seu principio é baseado na substituição antes da falta. Isto significa que se administra ao doente o que ele irá previsivelmente necessitar. No caso do trauma com hemorragia grave, administra-se concentrado de eritrócitos, que já estão em falta, e factores de coagulação, que irão faltar dentro de pouco tempo devido à coagulopatia induzida pelo trauma, numa tentativa de evitar, ou pelo menos atenuar, a sua gravidade.

O controlo de danos é, no fundo, uma manobra inteligente não só de tratamento mas de prevenção. Antecipar a catástrofe e minimizar os danos sofridos, tendo em conta que o próprio acto de tratar pode induzir lesões e complicações.

É clássica a história do doente que sofreu múltiplos danos e que, operado por um cirurgião sénior, esteve no Bloco Operatório durante horas e foi submetido a uma gastrectomia, colectomia, esplenectomia ... e respectivas reconstruções. Mas morreu. Este doente, em filosofia de controlo de dano era gastrectomizado, colectomizado, esplenectomizado, sem reconstruções. Demorava, no máximo, 90 minutos, ficava com o abdómen aberto. Teria que ser re-operado nos dias seguintes, uma, duas ou mais vezes, mas sobrevivia...

E para uma próxima, falamos de Síndrome de Compartimento Abdominal...


Bibliografia recomendada:
Asensio, J. and Trunkey, D. (2008). Current therapy of trauma and surgical critical care. Philadelphia: Mosby/Elsevier.
Boffard, K. (2011). Manual of definitive surgical trauma care. London: Hodder Arnold.
Hirshberg, A. and Mattox, K. (2005). Top knife. Castle Hill Barns, Shrewsbury, UK: Tfm Pub.
Schein, M. and Marshall, J. (2003). Source control. Berlin: Springer.

Capitulo 3: A ecografia ...

Tudo começou com uma banheira... Bem, a acústica, a ciência do som, era já conhecida por Pitágoras no século 6º a.C. e os ultra-sons foram utilizados pelo Homem pela primeira vez na detecção de submarinos, em 1917. Há muito que se sabia que existiam sons não detectáveis pelo ouvido Humano. A ecolocalização utilizada pelos morcegos foi descoberta por Lazzaro Spallanzani em 1794 (biólogo italiano do século XVIII). Mas a utilização médica, aquela que conhecemos hoje, começou numa banheira. O doente era colocado dentro da banheira, esta era cheia com água e o doente era bombardeado com ultra-sons. Nem sei se alguma vez estes aparelhos primitivos foram usados clinicamente.
 Foi a descoberta de um cristal que possuía propriedades piezeléctricas (Pierre Curie) que permitiu a evolução daquilo que hoje conhecemos como sonda, que mais não é do que um transdutor, capaz de transformar a energia eléctrica em acústica e vice-versa.
Desde os primeiros tempos da Medicina moderna, muito se evoluiu. A ecografia, porque é disso que se trata - a detecção e visualização de ecos - tem sido utilizada por diversas especialidades com objectivos distintos. Inicialmente monopólio da Imagiologia (então chamada de Radiologia, deixando esse nome de fazer sentido quando incorporaram a ecografia nos seus meios de diagnóstico) a ecografia foi sendo progressivamente integrada em outras especialidades como Gastroenterologia, a Ginecologia/Obstetrícia, a Oftalmologia, entre outras.
A Cirurgia Geral já usa a ecografia há muito tempo. A sua utilização intra-operatória verifica-se há longa data e tem ajudado os cirurgiões, sobretudo na área hepatobiliar, a tomar decisões importantes. A literatura refere que a ecografia é responsável pela modificação da estratégia cirúrgica em 1/3 das laparotomias por metástases de neoplasia colo-rectal. Porém, desde há alguns anos, a ecografia tem sofrido um progressivo processo de vulgarização. A escassez de Imagiologistas nas escalas de urgência, sobretudo fora-de-horas, e a necessidade de praticar uma "Medicina baseada na evidência" criaram a necessidade de disponibilização de um método de imagem moderno, fiável e de fácil interpretação. Era, e tem sido, possível, utilizar a TC relatada por telemedicina, mas quem conhece os cirurgiões sabe que isso não seria suficiente. A ecografia parecia, de facto, a resposta às necessidades. Seria necessária a aquisição de experiência e ultrapassar uma curva de aprendizagem longa. Seria necessário ensinar os olhos a ver anatomia em pontos brancos em vez de "ao vivo". E...
Tudo começou com o FAST - Focused Assessment with Sonography in Trauma. Fácil e rápido, com uma curva de aprendizagem desprezível. Só havia que encontrar o risco preto em 4 janelas bem definidas. A sua eficácia é fácil de demonstrar. Basta dizer que a sua utilização sistemática eliminou por completo (quase - ainda existem algumas indicações muito restritas para a LPD) a necessidade de realizar a lavagem peritoneal diagnóstica e passou a ser o exame obrigatório em ambiente de trauma.
Seguidamente apareceu o e-FAST - extended FAST - que permitia o diagnóstico em segundos da presença de um pneumotórax. Dada a sua utilidade no trauma, a incorporação do mini-exame torácico ao FAST foi o passo lógico. Rapidamente se percebeu que a acuidade diagnóstica da ecografia na detecção de pneumotórax estava a anos luz da da radiografia do tórax em decúbito.
O resto veio com a experiência. Vários grupos, no mundo inteiro, iniciaram uma evangelização dos cirurgiões que culminou na percepção que o ecografo é o estetoscópio do futuro e a ecografia não é mais do que uma extensão do exame físico. Agora, não apenas os cirurgiões aprendem ecografia. Os intensivistas, os médicos de urgência, entre outros, aprendem diversos protocolos ecográficos para o estudo de várias cavidades: abdómen, tórax, membros e até crânio...

A introdução da ecografia no curriculum do cirurgião parece-me o passo a seguir. Já o é em muitos países, sobretudo aqueles que possuem um curriculum definido de cirurgia de urgência.
Para começar, existem diversos cursos de iniciação de elevada qualidade e que permitem dar os primeiros passos. Mas o mais importante é praticar. A prática da ecografia é, seguramente, a melhor forma de ultrapassar a curva de aprendizagem, adaptando o nosso cérebro a olhar para as estruturas de uma forma gráfica diferente. Para uns será mais difícil do que para outros, mas o tempo e a prática permitirão que o nosso olho se adapte ao pontilhismo da ecografia. É como naquelas imagens escondidas que só após alguns minutos começamos a entender o que está escondido sob o primeiro plano.

Sob a égide da ESTES - European Society of Trauma and Emergency Surgery - foi desenvolvido um grupo de trabalho, constituído por entusiastas da ecografia, que criou a marca MUSEC - Modular UltraSound ESTES Course. Este é um curso  modular, com módulos básicos e avançados, para iniciantes e praticantes poderem aprender e iniciar a prática desta modalidade diagnóstica em diversos ambientes de urgência - trauma, urgência abdominal, trombose venosa, tecidos moles, etc.
Após o curso inaugural em Lyon em 2013, já foram realizados mais de 30 cursos em vários países da Europa, incluindo Portugal. O curso tem tido uma óptima aceitação entre os participantes e os seus instrutores são todos cirurgiões que praticam ecografia no seu dia-a-dia desde há muito, empenhados em difundir este conceito. Para mais informações podem aceder ao site:
http://www.thesoundofthebody.org/

Bibliografia recomendada:

Schmidt, G. and Beuscher-Willems, B. (2007). Ultrasound. Stuttgart: Thieme.
Wu, T. and Carlson, R. (2014). Ultrasound. Philadelphia, PA: Elsevier.
Zago, M. (n.d.). Essential US for trauma.