quarta-feira, 29 de junho de 2016

Capítulo 5: NOACs, Transfusão Massiva e coisas com sangue em geral - Parte II

Desta vez falamos de Transfusão Massiva.

Em qualquer reunião a que vá em que falamos sobre este assunto, pergunto sempre quem tem um Protocolo em vigor no seu Hospital e responde positivamente a maioria dos presentes. Porém, quando falamos nos corredores em Off acabo por perceber que nem sempre assim é. Pelo menos, na prática. Por experiência própria, noto haver muita gente que acha que sabe tudo, mas quando chega o momento e no meio do stress, até dificuldade têm em interpretar o fluxograma.

Transfusão refere-se à administração de sangue ou componentes do sangue. O primeiro registo conhecido de uma transfusão bem sucedida, terá sido o de uma transfusão de um cão para outro no século XVII por Richard Lower, médico particular de Carlos II. Ainda nesse século, em junho de 1667, Jean Baptiste Denys, médico de Louis XIV, transfundiu com sangue de caprino um homem, para tratamento da sua demência. Em Novembro do mesmo ano, Richard Lower fez o mesmo em Inglaterra. São os primeiros relatos de transfusões com seres humanos. Apesar dos resultados não terem sido completamente desastrosos, o doente de Lower sobreviveu, a transfusão humana só iria evoluir após mais de 150 anos… em 1818 com James Blundell.

Quase dois séculos depois falamos de Transfusão Massiva (tem havido alguma confusão relativamente ao termo a utilizar, se massiva ou maciça. Na minha opinião, e segundo os dicionários da lingua portuguesa que pude consultar, são termos diferentes e designam características diferentes. Assim, maciço é algo que não é oco, é compacto. A nossa designação de Transfusão Maciça vem do inglês e foi traduzida directamente. No entanto, a utilização no anglo-saxónico de massive, refere-se a algo de grandes dimensões, volumoso. Mais de acordo com o conceito de Transfusão Massiva, este termo é relativo a massas, a um grande número de pessoas ou que ocorre em grande quantidade. Por isso, o termo adequado deverá ser Transfusão Massiva que vou designar daqui em diante como TM.

A TM refere-se a uma reposição sanguínea de grande volume, habitualmente definida como sendo de 10 ou mais UCE nas 24 horas. Este conceito, embora correcto, implica um intervalo de tempo longo, pouco adaptável a situações de perda rápida de sangue, que os doentes que necessitam de TM habitualmente sofrem. Por isso, surgiu uma definição mais curta que implica a reposição superior a 5 UCE em 3 horas. Mas há mais... 

Definições de "massive blood loss"



Os doentes mais vulgarmente envolvidos neste tipo de catástrofe são os doentes com aneurisma da aorta, submetidos a transplante, com hemorragia digestiva, com hemorragias obstétricas e vitimas de trauma. Cerca de 10% dos doentes vitimas de trauma vão necessitar de algum tipo de transfusão e destes, 3% requerem uma TM. Se incluirmos só os doentes que entram nos Serviços de Urgência em choque, 24% vão necessitar de TM. Quase metade dos doentes que morrem por trauma morrem por exsanguinação. A transfusão de produtos sanguíneos reduz a mortalidade de forma significativa (quase 45%).

Perante um hemorragia massiva, a estratégia clássica passava pelo controlo da hemorragia e a reposição de volume com cristalóides e produtos sanguíneos. Esta estratégia visava a obtenção rápida da normovolémia, acreditando-se que seria essa a variável que levaria à homeostase. Lembro-me muito bem de ter lido no Schwartz (em 1990) uma experiência de ressuscitação, com melhores resultados quando se usava cristalóides associados ao concentrado de eritrócitos, em ratos. Boas noticias para os ratos. Também me lembro de, em 2009, assistir a palestras do Professor Mattox em Antalya (10th ECTES) em que ele afirmava que estávamos todos loucos porque ressuscitávamos os nossos doentes com água e sal. Achámos que o louco era ele...
Poucos anos depois percebemos que a estratégia que hoje consideramos clássica produzia edema por hiperhidratação, com risco de ARDS, Síndrome de Compartimento Abdominal e outras alterações celulares que culminavam no agravamento da coagulopatia e aumento da mortalidade.
A tríade da morte (acidose, hipotermia e coagulopatia) é o maior inimigo do doente e evitá-la a todo custo tem de ser o nosso objectivo primário. Mas, sabemos agora, um terço dos doentes vitimas de trauma grave chega coagulopático ao Hospital, colocando problemas adicionais. É impossível tratar o doente antes deste sofrer a agressão. Mas é possível travar o consumo e a diluição dos factores de coagulação, reduzir a actividade inflamatória e hormonal que desenvolvem as alterações patológicas associadas parando a hemorragia, tratando a hipóxia e a acidose, evitando a hipotermia e dando ao doente factores sanguíneos que prevemos necessários. 

A estratégia de controlo de danos aplicada à ressuscitação é a base em que se sustenta a TM. Por não conhecermos o doente, porque ele se apresenta em desequilíbrio, porque a avaliação desse estado é demorada e porque não se pode perder tempo, vamos fornecer ao doente aquilo que é necessário para regressar ao equilíbrio. Empiricamente.

O Protocolo de TM integra a estratégia de controlo de dano e nessa sequência, deve ser activado precocemente. Existem vários sistemas de classificação que permitem prever a necessidade de TM e estes devem ser usados para justificar a sua activação. Dos mais usados, o ABC, utiliza apenas dados de obtenção rápida como a tensão arterial (doente em choque), a frequência cardíaca, a história de trauma penetrante e a positividade do FAST. Uma vez activado, o fornecimento de produtos sanguíneos deve ser expedito e numa proporção favorável. Este conceito é muito controverso e a proporção ideal é desconhecida. Actualmente há uma tendência para a aproximação ao sangue total, com uma proporção de 1:1:1. Há estudos, no entanto, que referem ser importante ter uma proporção para servir de objectivo a atingir, para que os produtos sejam fornecidos em tempo útil. Isso parece ser mais importante do que a proporção propriamente dita.
Portanto: fornecer eritrócitos, para o transporte do oxigénio e plasma e plaquetas, para combater a coagulopatia. 
Além disso, os estudos favorecem a utilização de ácido tranexâmico (CRASH-2). Acredita-se que a coagulopatia associada ao trauma se inicia como um estado de hiperfibrinólise. A administração de ATX, um fármaco anti-fibrinolítico pode ser útil, se administrado cedo após o trauma. Apesar de aparecer em algumas publicações a utilização de ácido eta-aminocapróico como substituto do ATX, não existe na literatura nenhum suporte cientifico para o efeito. Existe um meta-análise da Cochrane que o refere mas sem apresentar nenhum estudo que o suporte. Mesmo em relação ao ATX, o seu beneficio é marginal, no entanto, é recomendado.
O Protocolo deve ser flexível e permitir controlo laboratorial. Fala-se muito do ROTEM que para a maioria de nós é ficção cientifica. Mas o controlo da coagulação e a administração de fibrinogénio e concentrado protrombínico podem ser importantes.
É óbvio que um terapêutica desta agressividade não é isenta de complicações. Reacções transfusionais, lesões pulmonares, transmissão de doenças e alterações hidroelectroliticas são apenas alguns exemplos. Por esse motivo, o Protocolo de TM deve ser abortado logo que a situação esteja controlada. 

No final, com o PTM conseguimos:
- Administração de ratios apropriados de produtos sanguíneos em tempo útil
- Reduzir a taxa de SCA e de abdómen aberto
- Reduzir a taxa de complicações sépticas, nomeadamente pneumonia
- Reduzir a taxa de Falência Orgânica Múltipla
- Reduzir a estadia hospitalar
- Reduzir a mortalidade
- Poupar dinheiro

A estratégia clássica apresentava, entre os anos 70 e 90, uma taxa de mortalidade variável entre 60 a 90%. A estratégia de controlo de dano reduziu, em menos de 20 anos, a taxa de mortalidade para valores máximos próximos dos 30%, sendo um factor independente preditor de sobrevivência.

O PTM encontra-se legislado desde 2013 com a Norma da DGS 011/2013 que estabelece as indicações para a sua execução e fornece um fluxograma de fácil compreensão e utilização. Não é perfeito, mas é um Protocolo e deve ser usado, tendo de ser adaptado ao local em que se usa. Os PTM são instrumentos institucionais que melhoram a comunicação, a disponibilidade e o tempo de espera dos produtos sanguíneos e, com isso, baixam significativamente a mortalidade.




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