sexta-feira, 1 de julho de 2016

Capítulo 6: Cirurgia na necrose pancreática

A pancreatite aguda é uma entidade nosológica muito comum, sendo um motivo frequente de recurso ao Serviço de Urgência. A responsabilidade pelo seu tratamento varia de Hospital para Hospital mas eu entendo ser um patologia cirúrgica que deve ser abordada por uma equipe multidisciplinar em que o cirurgião assume um papel preponderante. Apesar disso, a cirurgia na pancreatite aguda é rara, excluindo a colecistectomia para prevenção de novos episódios de pancreatite aguda, quando de etiologia biliar ou litiásica.
Há, no entanto, uma indicação cirúrgica que se tem mantido, apesar da evolução dos pensamentos nos últimos anos: a necrose pancreática infectada.

" Acute pancreatitis is the most terrible of all the calamities that occur in connection to the abdominal viscera. The suddenness of its onset, the illimitable agony which accompanies it, and the mortality attendant upon it, render it the most formidable of catastrophes."
B. Moynihan, 1925

A pancreatite aguda é reconhecida como patologia desde há muito. Em 1652, Nikolaus Tulp faz a primeira descrição anatomo-patológica conhecida. Em 1842, Heinrich Claessen identifica a pancreatite aguda como entidade clínica e em 1883, Hasn Chiari atribui à sua etiopatogenia as propriedades auto-digestivas, que ainda hoje conhecemos. Ao longo do século XIX a abordagem da pancreatite sofre diversos processo evolutivos, sendo em 1845 descrita a primeira drenagem de abcesso por Wandeleben. Em 1886 os parâmetros clínicos e laboratoriais para o seu diagnóstico são estabelecidos pela primeira vez (Nikolas Senn). É este último autor, também, o primeiro a tecer considerações lógicas sobre a necessidade de cirurgia na pancreatite aguda.




No inicio do século XX, várias técnicas cirúrgicas foram experimentadas, todas elas com elevadíssima mortalidade, o que não diferia da mortalidade da pancreatite aguda severa sem a abordagem cirúrgica. Em 1911, Hoffman considerava a pancreatectomia total como a medida mais segura de eliminar o foco inflamatório primário.
Rapidamente se começou a perceber que a cirurgia não era solução. Nesse sentido, Okinczyc, em 1933, afirma: "go right to the target, expose the gland, drain, and hope!"
A noção de que talvez a infecção pudesse beneficiar com cirurgia começava a enraizar, um conceito que iniciara os seus primeiros passos ainda no final do século XIX, com Werner Koerte (1894).




“A justificação para a intervenção cirúrgica na pancreatite aguda necrotizante foi sempre baseada na suposição que as taxas de mortalidade melhorariam com a cirurgia, e que as suas complicações, como a infecção secundária e a falência de órgãos pudesse ser eliminada ou substancialmente reduzida”

Bradley and Dexter, 2010


Neste universo de tantas dúvidas. É difícil responder de forma adequada às perguntas importantes:

1. Quem operar?

A defesa para operar os doentes com necrose estéril baseava-se nos pressupostos que a cirurgia poderia:
- Reduzir o "load" de mediadores inflamatórios sistémicos e assim reduzir o síndrome de disfunção orgânica múltipla;
- Reduzir o "load" enzimático local e assim reduzir a necrose e
- Reduzir o volume do tecido necrótico e assim reduzir a possibilidade de infecção.

No entanto, diversos estudos vieram mostrar que o tratamento conservador da necrose estéril era possível e com uma taxa de mortalidade inferior à dos doentes operados (2,3% vs. 11,9%). Por isso, concluiu-se que a necrose não infectada tem de ser manuseada de forma conservadora de princípio e a presença de necrose pancreática não é indicação, por si só, para exploração cirúrgica.
Porém, relativamente à necrose infectada, as conclusões já não são as mesmas. A infecção da necrose pancreática é um fenómeno tardio, acontecendo depois da 3ª semana de evolução da doença. No entanto, é um facto que triplica a mortalidade, sendo, por isso, o mais importante factor de prognóstico na pancreatite aguda complicada. A mortalidade elevada, superior a 30%, foi verificada em várias séries cirúrgicas recentes (desde os anos 80). E, como a mortalidade com a terapêutica não cirúrgica para a necrose infectada no passado é elevada (70 -100%), a randomização torna-se eticamente reprovável e um estudo comparativo difícil de obter.

Mesmo assim, um estudo publicado na Pancreas em 2005 por Runzi et al. demonstrou, em uma série de 88 doentes consecutivos com pancreatite aguda severa em que 28 desenvolveram necrose infectada e nenhum foi operado, uma mortalidade de 12%.

Porém, actualmente, estes dados são ainda controversos e o standard é, de facto, a cirurgia, perante necrose pancreática infectada. 
A infecção é reconhecida pela TC, apresentando gás nas colecções necróticas, ou pela persistência da sépsis, laboratorial (Procalcitonina, etc.) e clínica (falência de órgãos). A punção com agulha e exame bacteriológico é um assunto polémico, sobretudo entre cirurgiões. A contaminação é possível assim como é a sobreinfecção da necrose estéril.

Portanto, é indiscutível que a necrose pancreática infectada é uma indicação cirúrgica. A necrose estéril, não. Excepto em casos muito particulares...

2. Quando operar?

A questão seguinte é esta. E não é fácil de responder. Ao longo da história, não muito longa, já que eu próprio recordo alguns desses momentos, assistimos a opiniões distintas. Durante algum tempo defendeu-se a cirurgia precoce, mesmo sem diagnóstico de necrose pancreática. Rapidamente se percebeu que esta atitude não era favorável e que a morbilidade e mortalidade eram elevadas. Vários estudos de vários autores consagrados na matéria (Bradley, Sarr, Beger...) vieram confirmar esses achados empíricos. De facto, a cirurgia precoce era perigosa. Em 1997, Mier tentou demonstrar, em estudo randomizado, a diferença entre as duas abordagens, mas o estudo teve de ser interrompido por mortalidade excessiva no grupo de cirurgia precoce. Os valores de mortalidade encontrada eram de 56% para o grupo de cirurgia precoce e de 27% para o grupo de cirurgia tardia.

Os achados eram promissores, já que a indicação cirúrgica se limitava à infecção e o momento certo para a cirurgia era após as 4 semanas de evolução da pancreatite, altura em que iniciam a surgir os sinais de infecção. Os autores acreditam que a espera produz melhor demarcação do tecido necrótico, melhor visualização das alterações pancreáticas e peri-pancreáticas à TC o que permite um melhor planeamento e uma cirurgia com menor morbilidade.

3. Como operar?

O consenso mantém-se relativamente à necrosectomia. A forma como consegui-la é, hoje, fonte de disputa.
É fundamental evitar ressecções que poderão produzir dano entérico ou vascular e levar a complicações difíceis, ou mesmo impossíveis, de resolver. Há que remover o tecido pancreático e peri-pancreático necrosado e infectado, fonte do estado inflamatório e da sépsis. Há, também, que drenar colecções infectadas que contribuem de igual modo à manutenção da disfunção orgânica.
Classicamente, a necrosectomia por via transperitoneal é a via de eleição. A laparotomia permite um acesso fácil e rápido à cavidade retroperitoneal e uma necrosectomia completa. Se é seguida por encerramento primário ou laparostomia, a questão já é mais controversa. Bradley defende a laparostomia para permitir desbridamentos sucessivos, porque acredita que a primeira visita não é suficientemente eficaz. Também, a laparostomia, ajuda a prevenir o síndrome de compartimento. A via transperitoneal tem um problema não desprezível, uma taxa elevada de complicações. Fistulas digestivas, hemorragia, isquémia intestinal, hérnia incisionais e complicações metabólicas (diabetes) são comuns. De acordo com as séries e com as complicações descritas, a taxa de morbilidade pode variar entre 45 e 90%. A mortalidade é, também, elevada, mas dependente do estado critico do doente, com taxas entre os 7 e os 44%. 

Apesar de vários relatos de abordagem laparoscópica da necrose pancreática infectada, com diversas vias de abordagem e vários resultados, a abordagem transperitoneal manteve-se o Gold Standard na abordagem desta patologia. No entanto, a perspectiva poderá estar a mudar, à medida que mais autores utilizam as técnicas minimamente invasivas e reportam os seus resultados, que parecem ser, tendencialmente, melhores. Não são é baseados em estudos comparativos.

Em 2010 foi publicado no NEJM o resultado do estudo PANTER, que veio modificar a maneira de pensar a abordagem da necrose pancreática infectada. Trata-se de um estudo multicêntrico Holandês, com 88 doentes com necrose pancreática e suspeita ou confirmação de necrose infectada, divididos em 2 grupos. Um dos grupos foi submetido a necrosectomia transperitoneal e o outro a uma abordagem step-up. A abordagem step-up consiste numa abordagem progressivamente mais invasiva, iniciando-se com a drenagem simples guiada por métodos de imagem, passando por diversas técnicas endoscópicas e laparoscópicas, podendo culminar numa abordagem tradicional, transperitoneal. O estudo revelou que, apesar de uma taxa de mortalidade semelhante (16 vs. 19%), as taxas de complicações major e de falência orgânica de novo foram mais favoráveis no grupo step-up, bem como as taxas de hérnia incisional e diabetes de novo. A análise económica mostrou que, apesar da utilização de metodologias diferentes, a abordagem step-up permitiu reduzir os custos em 12%. As conclusões finais do trabalho foram que a abordagem em step-up permitiu:
- Reduzir a taxa de grandes complicações 
- Reduzir as complicações a longo prazo
- Reduzir o tempo e necessidades relacionados com os cuidados de saúde
- Reduzir os custos
- Que cerca de 1/3 dos doentes fossem tratados apenas com drenagem percutânea 
Poderá estar aqui o futuro do tratamento da necrose pancreática infectada. Esperemos pelos desenvolvimentos. Ainda existem muitos défices em muitos centros e nem todos têm meios e tecnologia para abordar a patologia deste modo.

Uma palavra final para uma entidade que tem sido descrita mas tem tido pouca atenção da parte dos grupos de trabalho que classificam e criam linhas de orientação para o estudo e tratamento da pancreatite aguda. Apesar da última revisão de Atlanta (2012) ter incluído 3 tipos de severidade na pancreatite aguda, a verdade é que parece existir um quarto tipo que, embora incluído na pancreatite aguda severa, apresenta uma estatística e história natural distintas. Alguns autores chamam-lhe a pancreatite aguda fulminante e caracterizam-na como associada a falência orgânica e necrose extensa (superior a 50%) de aparecimento durante a apresentação da doença ou nas primeiras horas de evolução. A taxa de infecção da necrose pancreática nestes casos é baixa e apresenta um elevadíssima mortalidade, habitualmente associada a Síndrome de Compartimento Abdominal. Esta situação pode representar uma indicação cirúrgica em necrose estéril, quando há ausência de resposta ao tratamento intensivo por um período máximo de 72 horas, sendo a cirurgia um último recurso. O tratamento consiste na realização de descompressão abdominal e laparostomia. A necrosectomia deverá evitar-se, já que se associa à sobreinfecção subsequente, o que aumenta de sobremaneira a mortalidade.

Em Conclusão:

1. Pontos consensuais:
  • A cirurgia na necrose infectada:
    • Deve ser realizada de preferência depois das 4 semanas de evolução
    • Consiste em Necrosectomia
  • A cirurgia pode estar indicada em caso de falência/disfunção orgânica múltipla sem resposta ao tratamento intensivo 
2. Pontos discutíveis:
  • Técnica transperitoneal:
    • Encerramento diferido
    • Encerramento primário
  • Via de abordagem:
    • Laparotomia mediana
    • Laparotomia subcostal
    • Via minimamente invasiva
  • Necrosectomia no SCA?

Na pancreatite aguda severa:
“Operamos doentes, não pâncreas” 
A cirurgia deve ser realizada em função do estado fisiológico do doente e da sua evolução clínica.





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