terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Capitulo 2: A fractura da bacia

Estou ligado ao trauma desde muito cedo na minha formação cirúrgica. Participei como aluno no segundo ATLS que se organizou em Portugal, no final dos anos 80 e pouco tempo depois fiz o curso de Instrutores. A viagem não acabou aí, porque continuei na senda da formação em trauma, com participações no DSTC, em cursos de e-FAST, na origem da Competência em Emergência Médica e por aí fora… além de uma pós-graduação em trauma na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Nessa senda, há algum tempo atrás, um Colega do Hospital de São João desafiou-me com o tema "sangue e ossos" para apresentar num dos Congressos de Internos que eles tão bem organizam. Era para falar de fractura da bacia e nem eu imaginava no que viria a dar. Eu achava, na altura, que o envolvimento do Cirurgião nestas questões, só faria sentido no contexto do trauma múltiplo grave e que, a fractura da bacia, per si, não era da nossa lavra. Escusado será dizer que estava enganado. No ano seguinte organizou-se uma reunião "Um dia Um tema" no Hospital de Viseu exclusivamente sobre o tema e no Congresso Nacional seguinte, o tema fez parte de uma mesa redonda sobre trauma abdominal fechado, com a participação do Prof. Michael Sugrue. A minha questão inicial, que me parecia legitima na altura, desvanecia e rendi-me à evidência de que algumas fracturas da bacia têm mesmo que ser tratadas por nós cirurgiões.
Desde então, tenho vindo a falar sobre o tema em diversas Reuniões e Congressos. Uma dessas apresentações foi compilada num artigo de revisão publicado na Revista Portuguesa de Cirurgia para o qual vos referencio através do link: http://cirurgia1chtv.pt/fractura-pelvica-nocoes-gerais-para-o-cirurgiao-geral/. Aqui encontrarão aquilo que eu acho que o Cirurgião deve saber sobre este assunto.

A fractura da bacia é, efectivamente, uma patologia muito complexa que necessita de uma abordagem multidisciplinar em que o Cirurgião Geral tem de assumir um papel preponderante, como Team Leader. A utilização do algoritmo preconizado e a aprendizagem do packing pré-peritoneal são fundamentais para um bom resultado. Leiam o artigo e julguem por vós mesmos...

Capítulo 1: A minha teoria do 1, 2 e 3...

O Cirurgião não tem tempo a perder... quer por ter inúmeras tarefas para cumprir, quer porque os seus doentes necessitam da sua atenção. Por isso, num local onde as distracções e afazeres são muitos, é preciso ter um algoritmo que lhe permita passar pela crista da onda sem cair. O meu é a teoria do 1, 2 e 3.

O Serviço de Urgência é isso mesmo, uma urgência, e como tal, não podemos utilizar os seus recursos para completar estudos inconsequentes que não produzam uma atitude urgente. Por esse motivo, existem exames complementares de diagnóstico que não são utilizados neste contexto. Seria desastroso, em termos de desperdício de recursos e de dinheiro. No entanto, é necessária a existência de recursos que possam minimizar o erro e produzam os efeitos desejados. No Serviço de Urgência, o nosso objectivo final como médicos é tratar o doente URGENTE. E, pelo caminho, vamos ter de o distinguir dos outros. É óbvio que "os outros" são a maioria, o que nos dificulta ainda mais a tarefa. Mas encaremos isto como um jogo do "Onde está o Wally?". Não ficamos felizes quando encontramos o Wally? Pois aqui também.

O momento de maior desespero, nas urgências actuais, é aquele em que ficamos sozinhos no Serviço de Urgência, começam a acumular doentes e parece que vamos perder o fio à meada. Nessa altura receamos que, no meio dos doentes ainda não observados, possa estar "o doente" e que possamos não dar conta dele atempadamente.
Nesses momentos, é de grande utilidade passar o olho de forma rápida, mas assertiva, por todos eles e triá-los. Essa triagem consiste no 1, 2 e 3.

A teoria do 1, 2 e 3 é a minha maneira de facilitar a escolha. Os doentes são estratificados de acordo com as suas características principais e os URGENTES tratados de forma urgente. A escolha não é difícil.  Na nossa abordagem inicial rápida, começamos a criar uma imagem mental da sua maleita e após alguns minutos, algumas apalpadelas e auscultadelas, percebemos se o doente é URGENTE ou não.
- 1: Os que podem ter alta. São a maioria. A tipologia destes doente varia muito e a patologia também. Muitos doentes que internávamos há poucos anos, são agora tratados de forma ambulatória. A decisão poderá passar por referenciá-los à Consulta Externa ou não, caso possam necessitar algum cuidado mais diferenciado, como, por exemplo, um penso. É o caso da maioria dos doentes com pé diabético. A decisão tem que ser rápida. Utilizar o mínimo de exames complementares indispensável para que possamos tomar a decisão em segurança. No entanto, há que ter algum cuidado. Recentemente surgiram dois casos que, à partida pareciam ser doentes de Tipo 1 mas alguns dados adicionais fizeram pensar noutros diagnósticos. Eram 2 mulheres pós-menopáusicas com varizes dos membros inferiores. Múltiplos episódios prévios de tromboflebites tratados com fármacos vários. Vinham ao SU por aquilo que parecia ser um novo episódio. Aparentemente nada de novo, certo? Bem. O facto é que a primeira relatava uns desmaios estranhos desde há uma semana e a segunda uma tosse recente, não explicada por uma infecção respiratória alta. Não hesitámos e solicitámos TC torácica. Ambas tinham embolia pulmonar. Ambas tinham tromboflebite com envolvimento da crossa da safena.
Outro caso: dor lombar de inicio súbito. Suspeita de cólica renal. Hematúria microscópica no Combur. Solicitada ecografia renal. O Colega Imagiologista fez o que se pediu e não observou o abdómen e relatou uma ecografia sem alterações de natureza aguda. O doente fez medicação e melhorou de forma espectacular. As análises eram normais. O doente teve alta. Entrou 2 horas depois em paragem cardiaca e veio a falecer por dissecção aórtica aguda.
São os dois lados de um espectro que, infelizmente, tem muitos outros lados. Há que ter cuidado.
- 2: Os que são para internar. Os critérios para decidir quais os doentes são para internar numa enfermaria de Cirurgia Geral são variáveis de  instituição para instituição. Há locais onde as pancreatites são tratadas por cirurgiões e outros onde o são por gastroenterologistas, por exemplo. Por isso, os doente de Tipo 2 são distintos de local para local. Porém, têm uma característica comum: não têm indicação cirúrgica urgente. Poderão necessitar de estudo prévio e ter indicação cirúrgica electiva ou ser alvo de preparação prévia e ter indicação cirúrgica urgente diferida. Poderão, ainda, não ter sequer indicação cirúrgica e serem tratados, tradicionalmente, por cirurgiões, ao critério da política vigente no Hospital. Feitios… No meu Hospital é o caso das infecções dos tecidos moles, entre outras patologias.
- 3: Os que são para operar com urgência. Aqui temos de distinguir os que são para operar já ou podem esperar "um certo tempo". Alguns doentes entram no Serviço de Urgência de tal forma mal que é óbvio que se nada for feito já, eles não sobrevivem. Estes doentes, após uma preparação inicial muito rápida (um catéter, uma sonda vesical, um soro ou mesmo nada) são acompanhados rapidamente ao Bloco Operatório, connosco ao lado da maca e operados. De emergência. Sem esperar por nada. Nem mesmo o sagrado jejum dos Anestesiologistas. Ou a disponibilidade de Instrumentista. É o caso dos doentes de trauma grave em choque, com lacerações de orgãos maciços, fracturas da bacia, lesões vasculares ou cardíacas. Pode ser o caso das hemorragias digestivas. No entanto, nestes casos, é sempre bom ter uma endoscopia digestiva que nos possa dizer o que sangra. Ás vezes não é possível. Nos casos de hemorragia digestiva baixa, por exemplo, nem sempre é possível realizar o exame ou ele ser consequente. Mas notem bem... estou a falar de doentes in extremis.
Há poucos meses fui chamado pelo Interno por volta das 4 horas da madrugada para ir observar um doente ao SO. Hemorragia digestiva alta. Internado pela Gastroenterologia nessa tarde após uma endoscopia que não mostrou nada. Agora sangrava. E bem. Assim o demonstravam as tensões e o sangue na sonda naso-gástrica. Ainda percebeu que ia ser operado. Menos de 10 minutos depois estávamos com ele no Bloco Operatório, prontos a começar e... começámos.
A maioria dos doente para operar pode esperar "um certo tempo". Alguns precisam mesmo de esperar um pouco. Fluidoterapia, Antibiótico, Oxigénio, tentar melhorar um pouco as condições gerais, podem ser medidas de extrema utilidade em alguns doentes. As oclusões intestinais são um bom exemplo. A fadiga do cirurgião é outro. Uma apendicite aguda ou uma colecistite pode ser operada pelos Colegas que entram de fresco no próximo turno, sobretudo se estes doente deram entrada no Serviço de Urgência de madrugada. Há que estar atentos aos doentes que vemos em "segunda mão" referenciados por Colegas indiferenciados ou de outras especialidades. Podem ter estado durante muito tempo na urgência, sem comer ou beber e sem soro. Além de poderem ter uma sépsis em agravamento, podem ter os efeitos da desidratação agravados pela espera "a seco".
Actualmente temos uma outra arma que podemos utilizar em beneficio dos doentes. Trata-se de técnicas minimamente invasivas para resolução de questões graves em doentes que poderão não beneficiar, ou ser mesmo prejudicados, com uma cirurgia. Os exemplos vão desde o tratamento endovascular de uma rotura traumática da aorta até à drenagem ecoguiada de um abcesso ou de uma colecistite aguda num doente com patologia cardíaca proibitiva de uma intervenção, mesmo que laparoscópica. Neste particular, é de extrema utilidade o cirurgião dominar a ecografia. Como outras especialidades o fizeram no passado, está na hora dos cirurgiões usarem esta arma diagnóstica e a introduzirem no seu arsenal.

Em suma, o cirurgião para o Serviço de Urgência tem de se preparar para o inesperado. Tem que se munir, não só de conhecimento e técnica capazes, mas, também, de uma flexibilidade mental e capacidade de raciocínio para reconhecer o que é verdadeiramente importante e distingui-lo do supérfluo. Num Serviço de Urgência apinhado, barulhento e hostil, pode ser a diferença, para o doente, entre a vida e a morte.




Preâmbulo: O porquê...

O Cirurgião no seu ambiente...
Podia começar por dizer: porque sim…
A verdade é, no entanto, um pouco menos simples.
Desde há perto de 20 anos, altura em que me iniciei nesta nobre arte de curar, a urgência de Cirurgia Geral tem sofrido poucas mudanças. E as que tem sofrido têm sido substancialmente negativas. Quer para o Especialista Hospitalar em geral, mas sobretudo para o médico cirurgião.
Temos visto o volume de doentes crescer. Não o volume de doentes cirúrgicos propriamente dito, mas o volume total de doentes. E dada a escassez (ou preço) dos recursos humanos de qualidade, os Serviços de Urgência tem utilizado os recursos existentes nos Serviços clínicos, canibalizando-os, para providenciar uma "segunda" triagem especializada. Assim, o Cirurgião Geral e o Interno de Cirurgia Geral, têm em mãos uma tarefa árdua, pouco especifica da sua formação e que leva rapidamente à sua exaustão. Este fenómeno não é exclusivo da Cirurgia Geral, mas transversal a todas as Especialidades do Serviço de Urgência, mas sobretudo das Especialidades chamadas "Principais": a Medicina Interna, a Cirurgia Geral e a Ortopedia. 
A taxa de doentes realmente urgentes tem diminuído ao longo do tempo. Fruto das políticas de saúde, com certeza, mas também da crença, por parte da população, que no Hospital têm um tratamento completo e que, apesar da espera, esperam menos por exames e tratamentos do que esperariam através dos cuidados de saúde primários. 

O cirurgião aprendeu a operar. Felizmente, essa é uma actividade que lhe é muito particular. E, no que toca ao Serviço de Urgência e à sua especificidade, eu diria mesmo única. No entanto, enquanto médico, é lhe exigido um ror de tarefas que estão muito para lá desse gesto altamente especializado e que o identifica como profissional e, a maioria das vezes, como pessoa inter-pares.
Se excluirmos as tarefas que não são atributos do Cirurgião, a este peão do Serviço de Urgência restaria uma tarefa muito simples, se bem que não menos cansativa. Essa tarefa, como costumo referir aos Internos que tiveram oportunidade de trabalhar comigo, é distinguir os doentes e classificá-los em um de três grupos: 1. os que não têm razão para se manter no Hospital e podem ter alta; 2. os que não têm indicação cirúrgica urgente mas precisam de tratamento ou estudo em ambiente hospitalar e são internados e 3. os que têm indicação cirúrgica urgente e devem ir para o Bloco Operatório… já. Esta é aquela que eu chamo da Regra do 1, 2 e 3.

O âmago do Cirurgião Geral no Serviço de Urgência é esta simples aritmética de 1, 2 e 3 e já está. Reparem que referi o Cirurgião Geral no Serviço de Urgência, porque o Cirurgião Geral para o Serviço de Urgência é um personagem muito mais grandioso. É um magnifico Maestro e Compositor, Mestre de uma Equipe de recursos finitos mas de qualidades infindáveis. Capaz de transformar o indivíduo enfermo num doente em recuperação e, por fim, até curá-lo. Este é o papel que todo o Cirurgião Geral gostaria de cumprir no Serviço de Urgência, mas não pode, dadas as vicissitudes da actualidade.
No entanto, a aritmética simples do 1, 2 e 3 é, para o Cirurgião experiente, a sua segunda natureza. Ajuda-o a separar o trigo do joio e permite-lhe identificar, com segurança, quais os doentes que são verdadeiramente cirúrgicos. Já o Cirurgião para o Serviço de Urgência, quando entra as portas do Reino desconhecido da Urgência, liga o seu modo SU e passa a agir de um modo diferente do da rotina. O Cirurgião Geral para o Serviço de Urgência é um Cirurgião fisiológico. Trata o doente a pensar na saúde das suas células. Fornece ao doente as condições para que as suas células possam obter oxigénio e ter condições para o utilizar. É um Cirurgião que pensa no lactato, na Saturação e no pH… Estes dois personagens não são exclusivos. Na verdade, o Cirurgião para o Serviço de Urgência é um Cirurgião no Serviço de Urgência, já que não tem outra alternativa na conjuntura actual. Mas o Cirurgião no Serviço de Urgência nem sempre é um Cirurgião para o Serviço de Urgência. E aqui é que reside a diferença entre o simplesmente necessário e o verdadeiramente extraordinário.

Os conceitos fisiopatológicos são óbvios para qualquer cirurgião que enfrenta, actualmente, as hordas infernais do Serviço de Urgência… mas não o são para os outros profissionais que com ele partilham o mesmo espaço sagrado. E, talvez por isso, não são capazes de perceber os seus queixumes e a necessidade que têm de dar azo ao seu descontentamento com o status quo… 

A imersão num tão vasto universo de variáveis em modificação constante é fonte de erros. O Serviço de Urgência é o local num Hospital mais sujeito ao aparecimento de erros. E esses erros têm consequências para os doentes, sobretudo, mas também para os profissionais. Não será, decerto, a intenção de um profissional com anos de carreira prejudicar intencionalmente o objecto da sua arte. Mas acontece. E a litigância tem sido cada vez mais frequente, até porque actualmente a Internet se mostrou um veiculo de obtenção de informação, fácil, mas nem sempre factual.
Uma das formas de reduzir a probabilidade do erro é a atenção. Outra é a experiência. A experiência própria e a dos outros. A experiência alheia documentada e revista faz parte daquilo a que podemos chamar de conhecimento. E é nossa obrigação fazer fluir o conhecimento de modo a que, os que nos seguem, sejam melhores do que os que nos precederam.

Porém, nem tudo vem nos livros. Ou nem tudo é facilmente obtido através da leitura de livros de texto. Muito conhecimento nasce da experiência pessoal de cada um, filtrado através da ciência e do estado da arte. Para mim, tem sido importante partilhar experiências e momentos com outros Colegas, sobre casos clínicos, truques e abordagens distintas das habitualmente publicadas. Cada caso é um caso, ouvimos muitas vezes. 
Tenho tido o privilégio de conhecer Colegas de quase todo mundo e tenho a sorte de poder chamar a alguns deles meus Amigos. Têm-me ajudado em momentos particulares, através de conselhos e da partilha da sua própria experiência. Temos desenvolvido trabalhos em conjunto e participado em acções de formação. Tenho a certeza que a riqueza da minha formação, modéstia à parte, se deve a este conjunto vasto de partilhas que desenvolvi ao longo destes quase 20 anos. E sei que posso fazê-lo convosco.

Os Internos de Cirurgia Geral serão os que, provavelmente, irão lucrar mais com estas notas soltas, pois estarão a "enfrentar o touro" quando, dentro de poucos anos, se virem frente a frente, sozinhos, com as inúmeras situações que o doente cirúrgico pode apresentar. E antes disso, terão que prestar provas e mostrar que o seu conjunto de partilhas foi suficiente e será a sua mais valia, para um futuro cada vez mais incerto.  Vivendo e aprendendo. E com a obrigação moral de não deixar o conhecimento sair desta estrada que só tem um sentido... em frente. Partilhar. E aprender.