terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Preâmbulo: O porquê...

O Cirurgião no seu ambiente...
Podia começar por dizer: porque sim…
A verdade é, no entanto, um pouco menos simples.
Desde há perto de 20 anos, altura em que me iniciei nesta nobre arte de curar, a urgência de Cirurgia Geral tem sofrido poucas mudanças. E as que tem sofrido têm sido substancialmente negativas. Quer para o Especialista Hospitalar em geral, mas sobretudo para o médico cirurgião.
Temos visto o volume de doentes crescer. Não o volume de doentes cirúrgicos propriamente dito, mas o volume total de doentes. E dada a escassez (ou preço) dos recursos humanos de qualidade, os Serviços de Urgência tem utilizado os recursos existentes nos Serviços clínicos, canibalizando-os, para providenciar uma "segunda" triagem especializada. Assim, o Cirurgião Geral e o Interno de Cirurgia Geral, têm em mãos uma tarefa árdua, pouco especifica da sua formação e que leva rapidamente à sua exaustão. Este fenómeno não é exclusivo da Cirurgia Geral, mas transversal a todas as Especialidades do Serviço de Urgência, mas sobretudo das Especialidades chamadas "Principais": a Medicina Interna, a Cirurgia Geral e a Ortopedia. 
A taxa de doentes realmente urgentes tem diminuído ao longo do tempo. Fruto das políticas de saúde, com certeza, mas também da crença, por parte da população, que no Hospital têm um tratamento completo e que, apesar da espera, esperam menos por exames e tratamentos do que esperariam através dos cuidados de saúde primários. 

O cirurgião aprendeu a operar. Felizmente, essa é uma actividade que lhe é muito particular. E, no que toca ao Serviço de Urgência e à sua especificidade, eu diria mesmo única. No entanto, enquanto médico, é lhe exigido um ror de tarefas que estão muito para lá desse gesto altamente especializado e que o identifica como profissional e, a maioria das vezes, como pessoa inter-pares.
Se excluirmos as tarefas que não são atributos do Cirurgião, a este peão do Serviço de Urgência restaria uma tarefa muito simples, se bem que não menos cansativa. Essa tarefa, como costumo referir aos Internos que tiveram oportunidade de trabalhar comigo, é distinguir os doentes e classificá-los em um de três grupos: 1. os que não têm razão para se manter no Hospital e podem ter alta; 2. os que não têm indicação cirúrgica urgente mas precisam de tratamento ou estudo em ambiente hospitalar e são internados e 3. os que têm indicação cirúrgica urgente e devem ir para o Bloco Operatório… já. Esta é aquela que eu chamo da Regra do 1, 2 e 3.

O âmago do Cirurgião Geral no Serviço de Urgência é esta simples aritmética de 1, 2 e 3 e já está. Reparem que referi o Cirurgião Geral no Serviço de Urgência, porque o Cirurgião Geral para o Serviço de Urgência é um personagem muito mais grandioso. É um magnifico Maestro e Compositor, Mestre de uma Equipe de recursos finitos mas de qualidades infindáveis. Capaz de transformar o indivíduo enfermo num doente em recuperação e, por fim, até curá-lo. Este é o papel que todo o Cirurgião Geral gostaria de cumprir no Serviço de Urgência, mas não pode, dadas as vicissitudes da actualidade.
No entanto, a aritmética simples do 1, 2 e 3 é, para o Cirurgião experiente, a sua segunda natureza. Ajuda-o a separar o trigo do joio e permite-lhe identificar, com segurança, quais os doentes que são verdadeiramente cirúrgicos. Já o Cirurgião para o Serviço de Urgência, quando entra as portas do Reino desconhecido da Urgência, liga o seu modo SU e passa a agir de um modo diferente do da rotina. O Cirurgião Geral para o Serviço de Urgência é um Cirurgião fisiológico. Trata o doente a pensar na saúde das suas células. Fornece ao doente as condições para que as suas células possam obter oxigénio e ter condições para o utilizar. É um Cirurgião que pensa no lactato, na Saturação e no pH… Estes dois personagens não são exclusivos. Na verdade, o Cirurgião para o Serviço de Urgência é um Cirurgião no Serviço de Urgência, já que não tem outra alternativa na conjuntura actual. Mas o Cirurgião no Serviço de Urgência nem sempre é um Cirurgião para o Serviço de Urgência. E aqui é que reside a diferença entre o simplesmente necessário e o verdadeiramente extraordinário.

Os conceitos fisiopatológicos são óbvios para qualquer cirurgião que enfrenta, actualmente, as hordas infernais do Serviço de Urgência… mas não o são para os outros profissionais que com ele partilham o mesmo espaço sagrado. E, talvez por isso, não são capazes de perceber os seus queixumes e a necessidade que têm de dar azo ao seu descontentamento com o status quo… 

A imersão num tão vasto universo de variáveis em modificação constante é fonte de erros. O Serviço de Urgência é o local num Hospital mais sujeito ao aparecimento de erros. E esses erros têm consequências para os doentes, sobretudo, mas também para os profissionais. Não será, decerto, a intenção de um profissional com anos de carreira prejudicar intencionalmente o objecto da sua arte. Mas acontece. E a litigância tem sido cada vez mais frequente, até porque actualmente a Internet se mostrou um veiculo de obtenção de informação, fácil, mas nem sempre factual.
Uma das formas de reduzir a probabilidade do erro é a atenção. Outra é a experiência. A experiência própria e a dos outros. A experiência alheia documentada e revista faz parte daquilo a que podemos chamar de conhecimento. E é nossa obrigação fazer fluir o conhecimento de modo a que, os que nos seguem, sejam melhores do que os que nos precederam.

Porém, nem tudo vem nos livros. Ou nem tudo é facilmente obtido através da leitura de livros de texto. Muito conhecimento nasce da experiência pessoal de cada um, filtrado através da ciência e do estado da arte. Para mim, tem sido importante partilhar experiências e momentos com outros Colegas, sobre casos clínicos, truques e abordagens distintas das habitualmente publicadas. Cada caso é um caso, ouvimos muitas vezes. 
Tenho tido o privilégio de conhecer Colegas de quase todo mundo e tenho a sorte de poder chamar a alguns deles meus Amigos. Têm-me ajudado em momentos particulares, através de conselhos e da partilha da sua própria experiência. Temos desenvolvido trabalhos em conjunto e participado em acções de formação. Tenho a certeza que a riqueza da minha formação, modéstia à parte, se deve a este conjunto vasto de partilhas que desenvolvi ao longo destes quase 20 anos. E sei que posso fazê-lo convosco.

Os Internos de Cirurgia Geral serão os que, provavelmente, irão lucrar mais com estas notas soltas, pois estarão a "enfrentar o touro" quando, dentro de poucos anos, se virem frente a frente, sozinhos, com as inúmeras situações que o doente cirúrgico pode apresentar. E antes disso, terão que prestar provas e mostrar que o seu conjunto de partilhas foi suficiente e será a sua mais valia, para um futuro cada vez mais incerto.  Vivendo e aprendendo. E com a obrigação moral de não deixar o conhecimento sair desta estrada que só tem um sentido... em frente. Partilhar. E aprender.

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