sábado, 4 de fevereiro de 2017

Capítulo 13: Isquémia mesentérica aguda

A isquémia mesentérica aguda foi alvo recente de uma publicação de guidelines em que tive o prazer de participar. Podem aceder ao artigo completo em http://link.springer.com/article/10.1007/s00068-016-0634-0.
Vou discutir neste texto apenas alguns aspectos mais práticos.

“Occlusion of the mesenteric vessels is regarded as one of those conditions in which the diagnosis is impossible, the prognosis hopeless, and the treatment almost useless”.

Esta frase, proferida por Cokkinis há mais de 70 anos atrás, revela um pessimismo que ainda hoje prevalece, quando falamos de isquémia mesentérica aguda (AMI). Para esta opinião contribui o mau prognóstico destes doentes, que se tem mantido ao longo de décadas, apesar da evolução técnica e cientifica da Medicina, em geral e da Cirurgia em particular.

A AMI constitui menos de 1% do total dos quadros de abdómen agudo que se apresentam nos Serviços de Urgência, mas cerca de 10% se os doentes tiverem idade superior a 70 anos. A mortalidade é elevada, entre 60 a 80%, sobretudo devido ao atraso diagnóstico.

A AMI pode ser dividida em 4 classes distintas:
- EAMI - embólica, a mais frequente, com origem habitual num êmbolo formado no coração.
- TAMI - trombótica, resultante da trombose de uma placa aterosclerótica na artéria mesentérica, habitualmente na sua origem.
Estas duas classes podem ser classificadas como AMI arterial oclusiva.
- VAMI - a trombose venosa, habitual numa população mais jovem e associada, frequentemente, a discrasias da coagulação.
- NOMI - a AMI não oclusiva, típica dos doentes críticos, habitualmente internados em Unidades de Cuidados Intensivos.

A doença arterial oclusiva é, de longe a mais comum. Os doentes são habitualmente idosos e portadores de patologia cardiovascular prévia, por vezes bem conhecida. A presença de arritmia cardíaca, principalmente fibrilhação auricular, sugere uma origem embólica. O inicio súbito da dor seguido de um intervalo livre de dor de duração variável (6 a 12 horas) é muito característico da oclusão embólica. A doença oclusiva trombótica tem uma apresentação mais insidiosa e por vezes, precedida de sintomas típicos de angor abdominal.
A doença venosa surge num contexto distinto. Os doentes são mais jovens, por vezes na década de 40. A associação com situações pré-trombóticas é muito frequente e entre estas o factor V de Leyden é o mais vezes encontrado. No entanto, não é de descartar a possibilidade de síndrome paraneoplásica, sobretudo de neoplasias primitivas do fígado e do pâncreas. As queixas são inespecíficas e com frequência de longa duração (vários dias ou semanas) e a sua evolução depende da extensão de delgado envolvido.
A doença não oclusiva é característica de doentes críticos. Doentes com sépsis, disfunção orgânica múltipla ou sob aminas são os mais típicos. Hemodiálise e pós-operatório de cirurgia cardíaca são outras condições que podem surgir associadas. Com o doente ventilado e entubado, as queixas clínicas são de pouco valor para levantar suspeita. Por vezes são o aparecimento súbito de distensão abdominal ou o agravamento dos parâmetros inflamatórios os primeiros indicadores da possibilidade de NOMI.

O primeiro passo para chegar ao diagnóstico é, efectivamente, a suspeita. Pensar na possibilidade de AMI é imprescindível para iniciar todo a investigação que leva a um diagnóstico precoce e a uma possibilidade de tratamento. Neste contexto, a suspeita pode ser, também, o melhor factor de bom prognóstico a favor do doente. Na presença de um doente com queixas abdominais inespecíficas, com idade e patologia associada favorável, a AMI deve fazer parte do diagnóstico diferencial inicial. O atraso diagnóstico é factor de prognóstico que mais influencia a sobrevida.

A suspeita deve levar à realização imediata de uma angioTC abdominal.
São várias as questões que se colocam relativamente à realização deste exame, porém, é apenas com ele que se podem tomar decisões relativas à subsequente atitude terapêutica. A presença de um doente com alguma instabilidade, por vezes com lesão renal aguda ou sem jejum, pode atrasar a realização da TC. No entanto, esta é uma das circunstâncias em que deverá ser realizada com a maior brevidade, sobretudo no doente que se apresenta com um quadro clínico sugestivo (dor abdominal, idade superior a 70 anos, patologia cardíaca...). Não existe nenhum outro meio diagnóstico que nos possa fornecer os dados que uma TC bem efectuada fornece. Já foram pesquisados imensos marcadores biológicos (e nós continuamos a procurar respostas na LDH, d-dimeros e lactatos, certo?) mas nenhum deles é sensível o suficiente para produzir alterações que nos conduzam ao diagnóstico em tempo útil.

Depois de conseguido um diagnóstico adequado, o doente necessita de uma ressuscitação adequada que passa pela administração de fluidos (cristalóides, quase sempre), correcção da acidose, administração de antibiótico de largo espectro e anticoagulação sistémica. A maioria destes doentes terão ser submetidos a algum tipo de intervenção para desobstrução vascular. Excluem-se os casos de trombose venosa, em que a anticoagulação pode ser suficiente e os doentes com NOMI...

Actualmente, no tratamento da doença oclusiva, podemos considerar que o Gold Standard é a angiografia e os procedimentos por via percutânea. É possível, por via endovascular, reparar estenoses da artéria mesentérica superior e mesmo remover trombos e êmbolos no seu interior. Há que salvaguardar os casos em que há sinais de irritação peritoneal ou outra evidência da existência de sofrimento irreversível das ansas intestinais, indicando, formalmente, a sua ressecção. Nestes casos, além do procedimento de revascularização, é necessária a laparotomia para remoção do tecido necrosado.
Porém, a logística necessária para estes procedimentos não está disponível em todos os Hospitais e, nestes casos, tempo é dinheiro. Assim, poderá ser necessária a abordagem primária cirúrgica para restabelecimento da continuidade vascular. Em casos de ausência de sinais que indiquem uma exploração urgente por peritonite, é aceitável a transferência do doente para um Hospital com meios imagiológicos de intervenção, caso a transferência se possa fazer de forma expedita. Nos restante casos, o Cirurgião Geral ou o Cirurgião Vascular, terão de abordar o doente com uma estratégia de revascularização em mente, além da possibilidade de ressecção intestinal. No caso da EAMI, a embolectomia da artéria mesentérica superior é, em regra, suficiente. Após um controlo proximal e distal da artéria, com dissecção cuidada, a "Fogartização" proximal e distal com verificação de retoma de fluxo é a manobra adequada. Classicamente, nestas circunstâncias, a arteriotomia deve ser transversal, permitindo o acesso ao lúmen e prevenindo o estreitamento aquando do seu encerramento (Prolene 4 ou 5/0). Já no caso da TAMI, deveremos "Fogartizar" de igual forma, mas a arteriotomia deverá ser longitudinal, preparando-a para a pontagem, necessária nestes casos, se se pretende ter resultados duradouros. A pontagem, ou bypass, como se gosta actualmente de dizer, assume-se como o tratamento definitivo da doença arterial obstrutiva e pode ser efectuada com prótese ou veia, directamente à aorta ou, mais facilmente, à artéria ilíaca esquerda. Apesar da prótese produzir melhores resultados mas devemos lembrar que se trata, muitas vezes, de território infectado que poderá contra-indicar a utilização de material estranho. Seguem-se a estas intervenções, as ressecções intestinais necessárias. É habitual anticoagular os doentes e mesmo administrar heparina sódica intra-arterial aquando do restabelecimento do fluxo, em sentido anterógrado.
Na sequência de uma laparotomia por isquémia mesentérica arterial coloca-se sempre a questão do second-look. Este procedimento deverá ser realizado sempre que haja dúvidas sobre a viabilidade das ansas intestinais após um tratamento cirúrgico com intenção curativa. Poderá ser realizado "on demand" ou programado e em contexto de controlo de dano ou não. Actualmente, considera-se mais conveniente a realização inicial de uma cirurgia de controlo de dano, com remoção das ansas isquémicas, encerramento dos topos e revisão posterior com confecção das anastomoses. Não existe apoio cientifico para este tipo de atitude, mas tem-se verificado que os resultados são aceitáveis, assim como para a generalidade da atitude de controlo de dano noutras circunstâncias. As anastomoses devem ser evitadas quando o doente se apresenta instável do ponto de vista hemodinâmico e metabólico, devendo optar-se, nestes casos, pelo controlo de danos. A segunda visita deverá ser realizada pelas 48 horas. Os estudos demonstram que para lá desse tempo aumenta a taxa de infecção e de incapacidade de encerrar o abdómen primariamente. Se realizada antes, ainda não houve tempo suficiente para que se desenvolvam os sinais de isquémia intestinal que irão decidir qual o limite da ressecção.
O tratamento da trombose mesentérica venosa passa pela anticoagulação sistémica com heparina de baixo peso molecular, substituída por um dicumarínico logo que possível. Alguns centros Americanos têm utilizado NOACs no tratamento desta situação. Se bem que a literatura e as guidelines sobre estes fármacos são omissas relativamente a esta patologia em particular, a realidade é que considerando-a como doença tromboembólica ela cai nas indicações actualmente aceites para a administração destes fármacos. Atender ao facto que, no caso dos dicumarínicos, estes interferem com os resultados analíticos na pesquisa de trombofilia,(por exemplo, proteínas C e S) pelo que só devem ser iniciados após colheita de amostra para o laboratório. De igual modo à isquémia arterial, a presença de sinais de irritação peritoneal ou de perfuração de víscera oca, deverá levar a laparotomia imediata. A maioria das vezes, o que se encontra é um segmento de delgado de aspecto edemaciado e vinoso, cuja viabilidade é, quase sempre, duvidosa e difícil de esclarecer, levando quase sempre à sua ressecção.
A NOMI é bem mais complexa. Quer na sua etiopatogenia quer no seu tratamento. Habitualmente associada a situações criticas com instabilidade hemodinâmica e utilização de aminas, ou a pós-operatório de cirurgias major, habitualmente cardíaca ou vascular, testemunha uma isquémia distal do território esplâncnico provocada défice de volume ou vasoconstrição extrema deste território vascular. A sua resolução passa pelo tratamento das condições de base que levaram a esse estado de défice perfusional e, a maioria das vezes, a ressecção dos segmentos intestinais, habitualmente delgado, atingidos. A mortalidade é muito alta, devido ao mau estado dos doentes e também à necessidade de ressecções muito amplas.

A forma como olhamos para a isquémia mesentérica poderá modificar-se nos próximos tempos. Em grande medida, o prognóstico está ligado à rapidez com que se chega ao diagnóstico. Essa precocidade, agora dependente do índice de suspeição do Médico que observa o doente, poderá ser dependente, no futuro próximo,de uma análise laboratorial especifica e barata. Vários grupos têm investigado o poder discriminativo de marcadores de necrose intestinal, componentes da mucosa digestiva. Infelizmente, a aplicação prática de uma descoberta como esta, parece ainda distante, dado que os vários marcadores testados não se têm mostrado particularmente específicos da AMI,apesar da sua elevada sensibilidade. Vamos ter de esperar. Até lá, temos de pensar neste diagnóstico como uma possibilidade em todos os doentes incluídos nos de risco.

Não se esqueçam de dar uma olhadela ao artigo das Guidelines que está disponível on line.