sábado, 9 de julho de 2016

Capitulo 9: Hemorragia digestiva alta

A Hemorragia Digestiva Alta é uma causa comum de recurso ao Serviço de Urgência. É responsável por um custo anual superior a 750 milhões de dólares (nos EUA) com uma prevalência à volta de 170 casos por 100.000 habitantes. A sua mortalidade tem-se mantido estável nos últimos anos, apesar do aparecimento de novos métodos tecnológicos para o seu diagnóstico e tratamento, entre 6 e 8%, de acordo com as diferentes séries. Acima dos 60 anos, a mortalidade é superior a 20%.

Por definição, a HDA é aquela que tem origem proximalmente ao ângulo de Treitz, ou seja, no esófago, no estômago ou no duodeno. As principais causas são a doença péptica (55%) e as varizes esofágicas (15%). As restantes etiologias, menos frequentes (cerca de 5%) distribuem-se entre as malformações arterio-venosas, a síndrome de Mallory-Weiss, a lesão de Dieulafoy, tumores, entre outros.

A HDA apresenta-se, habitualmente, com hematemeses, melenas ou choque. Apesar de puderem apresentar-se de forma algo espectacular, 80% resolvem de forma espontânea. Apenas 20% necessitam de algum método de tratamento para a sua resolução, endoscopia, angiografia ou cirurgia. Em 90% dos casos em que se utiliza a endoscopia, ela será bem sucedida. Dois porcento necessitaram de uma intervenção cirúrgica emergente.

O esófago é origem da hemorragia em 19 a 25% dos casos. As causas esofágicas mais comuns são as varizes, a erosão mucosa e a síndrome de Mallory-Weiss.
As varizes são características do doente cirrótico com hipertensão portal. Podem surgir em casos de cirrose compensada (30%) e descompensada (60%). São responsáveis por 90% das HDA nos doentes com cirrose, mas não são causa exclusiva. A mortalidade é elevada e a HDA por varizes é um factor de mau prognóstico vital na evolução da cirrose. A sobrevida a um ano é de 60%, aos 5 anos de 34% e aos 10 anos de 14%. Sete ponto quatro porcento dos doentes com HDA por varizes esofágicas morre nas primeiras 48 horas e 23,5% no internamento subsequente.
A erosão mucosa esofágica é habitualmente causada por ingestão de produtos cáusticos, a maioria das vezes medicamentos. São exemplos comprimidos de ferro, tetraciclinas, cloreto de potássio, antibióticos, alendronato, AINE, entre outros. Por este motivo, aconselha-se a toma de qualquer medicação em posição erecta e com muita água. Exemplos de outras causas são os corpos estranhos, sobretudo as sondas gástricas e o refluxo gastro-esofágico.
A síndrome de Mallory-Weiss é uma entidade descrita por estes autores em 1929 e que consiste na laceração mucosa a nível da junção esofago-gástrica induzida pelo vómito. Associa-se ao alcoolismo, à hérnia hiatal, à toma de AINEs, hipertensão portal, entre outros factores.

O estômago é origem da hemorragia em 21% dos casos. A principal causa é a doença péptica, mas também pode ter origem na gastrite erosiva, na lesão de Dieulafoy, cancro, gastropatia hipertensiva, etc.
Os AINE são causa de 50% das hemorragias de origem ulcerosa. Actuam por contacto directo mas, fundamentalmente, por inibição da síntese de prostaglandinas que são factores protectores da mucosa gástrica. A doença péptica sofreu uma revolução com a descoberta do Helicobacter pylori, descrito por Marshall em 1984. Inicialmente desconhecia-se a sua acção, mas rapidamente se percebeu que se tratava de um patógeno presente em 90% dos doentes que desenvolvem uma complicação ulcerosa. É reconhecidamente causa de cancro e linfoma gástricos. A erradicação do HP levou a uma redução significativa da prevalência da doença ulcerosa no mundo mas, curiosamente, a prevalência da complicação hemorrágica, e também da perfuração, não diminuiu. Isto evoca a possibilidade de uma origem diferente para estes tipos de complicação, contudo, não existem dados que o expliquem de forma segura.
A gastropatia erosiva é uma complicação grave que surge em doentes críticos, sendo considerada uma forma de disfunção orgânica, com uma mortalidade superior a 40%. A sua origem é multifactorial para a qual concorrem a má perfusão tecidular, a medicação vasoactiva e a ventilação com pressão positiva.
A lesão conhecida pelo nome de Dieulafoy desde 1908, terá sido descrita pela primeira vez por Gallard em 1884. É uma lesão de natureza vascular, localizada à submucosa e próxima do cárdia. É rara, constituindo menos de 1% de todas as HDA. Além do erro na sua denominação, actualmente, muitos autores atribuem este nome a outras lesões do mesmo tipo encontradas em outras localizações do tubo digestivo. Uma designação de natureza anatómica ou anatomo-patológica seria mais lógica e mais correcta.
A hipertensão portal pode causar hemorragia gástrica de formas distintas. Uma delas é através de varizes gástricas, por hipertensão portal sinistra ou envolvendo os ramos da veia esplénica. É rara. Outra, mais comum, é a gastropatia hipertensiva, responsável por 2 a 3% das HDA no doente cirrótico.

O duodeno é origem da hemorragia em cerca de 23% das vezes. A causa mais comum é, indiscutivelmente, a doença ulcerosa de natureza péptica. Mas há outras causas.
A forma mais frequente de doença péptica é atribuível a uma ulcera de localização ao bulbo ou pós-bulbar, na parede posterior. Na sua evolução e destruição da parede, a ulcera acaba por erodir a artéria gastro-duodenal e provocar uma hemorragia aguda com repercussão sistémica importante.
Uma causa rara, mas curiosa, é a fistula aorto-entérica. Surge em doentes com cirurgia aórtica prévia, habitualmente por aneurisma, com estabelecimento de uma fistula entre anastomose vascular proximal e o duodeno. Habitualmente localiza-se à 3ª ou 4ª porções do duodeno, pelo que a endoscopia digestiva realizada inicialmente pode não identificar o local de hemorragia. A história é muito típica, com episódios de hemorragia e choque não identificados pela endoscopia, dos quais o doente recupera. A hipotensão permite a formação de coágulo no trajecto fistuloso parando temporariamente a hemorragia. À medida que a tensão arterial sobe, o coágulo é desalojado e reinicia a hemorragia. Este ciclo pode acontecer várias vezes antes de se reconhecer a causa. Existe um tipo de fistula aorto-entérica primária, sem cirurgia arterial prévia, de localização semelhante mas cuja fisiopatologia é desconhecida. Há poucos casos descritos na literatura e pode associar-se à existência de aneurisma não tratado.

Apesar dos meios diagnósticos actualmente disponíveis, 8 a 12% das HDA ficam por localizar. E apesar do local hemorrágico, os procedimentos básicos de tratamento são sempre os mesmos:
1)Estabilização hemodinâmica
2)Localização da fonte hemorrágica e
3)Terapêutica dirigida
A endoscopia digestiva alta tem um papel muito importante no diagnóstico e no controlo da hemorragia na maioria das situações. A identificação do local é, também, imprescindível aquando da necessidade de cirurgia. Não sendo uma situação de trauma, não deixa de ser uma situação potencial de hemorragia massiva pelo que a instituição de uma resuscitação de tipo controlo de dano pode estar indicada, activando o PTM.
Os único fármacos que têm demonstrado ser úteis no controlo da hemorragia e da sua recorrência são os inibidores da bomba de protões e devem ser utilizados desde o inicio. A lavagem gástrica poderá ajudar. Reduz o volume de sangue no estômago permitindo uma melhor visualização. Porém, a lavagem com soro frio produz hipotermia que pode agravar a hemorragia. Deve usar-se de forma judiciosa.
A endoscopia é o pilar principal do tratamento. Existem diversas metodologias hemostáticas disponíveis, com recurso a clips, adrenalina, electrocautério, etc. A endoscopia consegue controlar mais de 90% dos casos. A falha do tratamento endoscópico dita a indicação cirúrgica.
Relativamente à hemorragia por úlcera péptica, existem vários scores que podem ajudar na tomada de decisão. A classificação de Forrest define o risco de re-sangramento associado às características macroscópicas da ulcera e dos sinais de hemorragia. O score de Rockall é um índice de prognóstico relacionado com variáveis do doente, da hemorragia e da apresentação clinica.
A grande questão é sempre a da necessidade de cirurgia. A diferença entre operar um doente atempadamente ou em choque hipovolémico pode ser a diferença entre a sobrevida e a mortalidade. Poder prever a necessidade de cirurgia antes de um evento catastrófico pode salvar a vida do doente. A cirurgia da HDA comporta uma morbilidade e mortalidade que devem ser avaliadas e tomadas em conta aquando da decisão. Não existem propriamente regras que possam ser usadas de forma linear. Há que equacionar todas as variáveis e decidir.
Se após tentar o tratamento endoscópico este é incapaz de controlar a hemorragia, a decisão de operar parece-me óbvia. Se a hemorragia parou, mas existem estigmas de elevado risco de resangramento, o doente poderá ser vigiado de perto e repetir a endoscopia, ou ser preparado para um cirurgia semi-electiva ou urgência diferida. A maioria das vezes, estes doentes são admitidos em unidades de cuidados intermédios/intensivos e vigiados. Serão operados em caso de recorrência. Se a hemorragia parou e os estigmas são de baixo risco, em principio não há razão para operar estes doentes. Deverão ser posteriormente tratados com erradicação do Helicobacter.

A cirurgia na HDA deve ser expedita. Em 2 sentidos: na decisão - nem demasiado tarde nem demasiado cedo, e na técnica - nem muito pouco nem muito muito... O objectivo é resolver o problema com a solução cirúrgica mais simples, que muitas vezes é um sutura hemostática. Não há lugar para cirurgias de ressecção ou "definitivas".
A angiografia pode ter papel importante em casos especiais, nomeadamente na hemobilia, nos tumores... mas é preciso que esteja disponível.

Alguns factores estão associados com um prognóstico mais desfavorável:
Hemoglobina inferior a 7
ASA 4
Idade superior a 80 anos
Lesão renal aguda
Recorrência hemorrágica
Falência do tratamento endoscópico

Conclusão:
- A maioria das HDA não serão tratadas pelo cirurgião
- A maioria das HDA em que o cirurgião é envolvido não serão para operar
- A resuscitação é um aspecto importante
- Quando for necessário operar, é preciso fazê-lo a tempo
- Quando for necessário operar, é preciso fazê-lo de forma simples e eficaz

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