terça-feira, 5 de julho de 2016

Capítulo 7: Hemorragia Digestiva Baixa

A hemorragia digestiva baixa é uma entidade nosológica bastante abrangente, com um diagnóstico diferencial algo extenso, e que surge com alguma frequência nos Serviços de Urgência.
O conceito de HDB engloba todas as hemorragias com origem no tubo digestivo distal ao ângulo de Treitz. Clinicamente manifesta-se por melenas, hematoquézia ou rectorragia. As características do sangue que é exteriorizado dependem do local da hemorragia, do tipo de lesão e da velocidade ou débito da hemorragia.

A HDB tem uma prevalência razoavelmente baixa, com 20 a 27 casos por 100,000 habitantes, podendo representar uma morbilidade de 11,6% e uma mortalidade até 5,4%, dependendo a mortalidade, dos casos cirúrgicos, que têm maior mortalidade.
A grande maioria resolve de forma espontânea. As causas mais frequentes incluem os divertículos do cólon, as hemorróidas e a colite isquémica. Na actualidade, estas 3 etiologias compreendem perto de 60% dos casos de HDB. Evidentemente que outras causas, como a doença inflamatória intestinal, a neoplasia, as telangiectasias, entre outras, deverão também ser incluídas no diagnóstico diferencial.

A distinção mais importante que deve ser, obrigatoriamente, realizada no SU é entre uma hemorragia severa de uma hemorragia moderada. A hemorragia ligeira é, habitualmente de natureza oculta e, como tal, não percebida pelo doente, que não procura ajuda médica por isso. Mas as hemorragias moderada e severa são percebidas pelo doente e ele vem ao SU por esse motivo. É importante notar que a severidade da hemorragia não deve ser inferida pela descrição do doente ou do acompanhante, que habitualmente exacerbam de forma significativa aquilo que viram, A visão de sangue é um evento impressionante e as pessoas tendem a exagerar na descrição.
Na hemorragia severa é regra a instabilidade hemodinâmica e, pela sua importância, desenvolverei o tema mais à frente.
A hemorragia moderada, com o doente estável, permite uma observação cuidada, tentando perceber qual a gravidade da situação utilizando os recursos disponíveis, até chegar a um diagnóstico etiológico para estabelecer o plano de actuação para o doente, que pode ser em regime de internamento ou em ambulatório. A observação do doente tem de incluir um toque rectal minucioso e uma avaliação hemodinâmica cuidada em simultâneo com as medidas de resuscitação julgadas adequadas. A colheita de sangue para hemograma e gasimetria é fundamental para perceber qual a repercussão orgânica da perda de sangue sofrida. A relação ureia/creatinina pode ser útil para inferir a origem da hemorragia. Valores elevados de ureia sugerem o trânsito de sangue ao longo do tubo digestivo e, como tal, uma hemorragia de localização alta.
Alguns dados da história da doença actual e do passado médico podem ser fundamentais para nos guiar no diagnóstico etiológico. A existência de dor, perda ponderal recente, antecedentes de episódios semelhantes, são dados importantes para levantar suspeitas diagnósticas mais precisas. A existência de doença hepática, radiação pélvica prévia e cirurgia por aneurisma da aorta são situações que podem produzir causas de HDB especificas e muitas vezes são esquecidas num interrogatório sistemático (varizes esofágicas ou rectais, proctite rádica, fistula aorto-entérica). Por fim, e sem esgotar este tema, a medicação em uso. A utilização de fármacos que actuam na coagulação (sejam anticoagulantes, orais ou parenterais ou antiagregantes plaquetares) podem influenciar a existência e mesmo a gravidade da hemorragia. Os estudos demonstram que a taxa de doentes que sofre uma hemorragia digestiva é superior em doentes que tomam AINE (com acção antiagregante) comparativamente com a população em geral (19 vs. 9%). De igual modo, e a titulo de exemplo, a taxa de doentes que sofre uma hemorragia digestiva é maior se estes tomam Aspirina do que na população em geral.
Como já referido, o exame rectal é fundamental. Pode mesmo ser o único "meio complementar" necessário neste contexto. A observação de hemorróidas, fissura, aspectos sugestivos de anusite, a palpação de um pólipo, associadas à observação de fezes sem sangue no canal rectal são diagnósticas de uma lesão local. Esta lesão anorectal, apesar de necessitar estudo mais alargado, poderá sê-lo em contexto de ambulatório, dependendo da repercussão orgânica da hemorragia. A maioria das vezes, são referenciados para realização de colonoscopia em ambulatório e medicados com medicação tópica para tratamento dos sintomas. Neste tipo de diagnóstico pode, também, ser muito útil a anuscopia ou rectoscopia que deve ser realizada pelo cirurgião. Na dúvida de se tratar de uma hemorragia digestiva alta (por exclusão de partes, a que tem origem acima do ângulo de Treitz) deve introduzir-se uma sonda gástrica que, se der saída a bile, exclui essa possibilidade. A saída de conteúdo aquoso ou alimentar não exclui de forma peremptória a origem alta da hemorragia, pois o piloro fechado impede o refluxo e esconder uma hemorragia de origem duodenal.
A HDB moderada irá necessitar sempre de uma colonoscopia. Esta poderá ter de ser realizada no mesmo dia, caso o volume da hemorragia o justifique. Por exemplo, o caso de rectorragia sem fonte perianal, testemunha de um débito importante mas com o doente hemodinamicamente estável. Nesse caso, a realização de alguns enemas de limpeza, ou seja, preparação retrógrada, poderá facilitar a visualização da fonte hemorrágica e o seu eventual tratamento endoscópico. Este é muitas vezes o caso, por exemplo, na hemorragia diverticular. Em 88% destes doentes a hemorragia é controlada por clips colocados por endoscopia. No entanto, cerca de 23% recorrem ao fim de 4 anos. Nos casos menos urgentes, como poderão ser a maioria dos casos de hematoquézia, a colonoscopia poderá ser adiada para o dia seguinte, inclusivamente após uma preparação anterógrada ligeira ou parcial. Os estudos revelam que a preparação do cólon permite uma melhor visualização da mucosa, tornando o diagnóstico etiológico mais provável. Porém, após as 24 horas de apresentação, a possibilidade de identificar a fonte hemorrágica vai diminuindo com o tempo, pelo que a colonoscopia não deverá ser adiada mais do que 12 a 24 horas. O diagnóstico de angiodisplasia é o que mais frequentemente pode passar despercebido. 
A HDB pode ter origem no delgado, o que é raro. A maioria dessas situações não é diagnosticada no SU. O doente é inicialmente submetido a um panóplia de exames que podem incluir a TC, a Angiografia e a Cintigrafia com glóbulos marcados e pode mesmo culminar na video-cápsula. Na HDB em geral, o papel da angiografia não se encontra definitivamente definido pela pouca difusão deste exame entre os Hospitais. Sabe-se que tem capacidade diagnóstica e terapêutica e é, por isso, uma modalidade muito apreciada e muito discutida em Congressos. Já a TC, sobretudo a angioTC, pode desempenhar um papel muito importante, mesmo em Hospitais de menores dimensões que não disponham de Angiografia mas tenham uma suite de TC. Permite identificar o local da lesão e pode mesmo identificar o diagnóstico etiológico. Para identificar o local só é necessário haver hemorragia activa e a angioTC identifica um débito de hemorragia inferior ao da Angiografia. Um filme tardio pode mostrar o local da hemorragia onde se acumulou contraste que saiu para o lúmen digestivo e que não foi visto nos filmes iniciais. É um exame a incluir no arsenal de diagnóstico da HDB e nos fluxogramas de orientação destes doentes.

A HDB severa é um capitulo à parte. A tomada de decisão é, aqui, fundamental. O doente encontra-se hemodinamicamente instável, é, na maioria das vezes idoso (> 65 anos) e a mortalidade associada é superior a 20%. Se há necessidade de cirurgia urgente a mortalidade é ainda mais alta (20 a 50%).
A cirurgia está indicada ma instabilidade hemodinâmica não reversível com os meios de resuscitação disponíveis, na hemorragia continuada por mais de 72 horas, na recorrência da hemorragia após 24 horas e em todos os doentes que necessitem de mais de 6 UCE nas 24 horas. Nestes casos, a angioTC pode ser o método de imagem mais valioso, mesmo se dispomos de Angiografia. Ela permite orientar o tratamento e evitar quer uma laparotomia às cegas que pode ser desastrosa quer uma Angiografia às cegas, menos sensível que uma angiografia dirigida, superselectiva.
Classicamente, perante uma HDB de origem não esclarecida as opções eram a ressecção segmentar e a colectomia subtotal. Presumir a origem da hemorragia pela idade, pelo aspecto do sangue e pela cor do cólon não é boa política. A realização de ressecção segmentar nestas circunstâncias tem uma taxa de recorrência hemorrágica muito elevada. Por esse motivo, e nestas condições, recomenda-se a colectomia subtotal, apesar dos riscos inerentes. A realização de colonoscopia na mesa é, a maioria das vezes inútil, gasta tempo e não ajuda na toma de decisão. Pode identificar sangue no cólon direito em casos de hemorragia à esquerda e vice-versa, o que conduz a uma tomada de decisão errada e a uma cirurgia inútil. A angioTC pode, aqui, ter um papel fundamental, podendo indicar uma cirurgia mais conservadora.
O melhor é não ter de operar estes doentes e resolver o problema de forma não cirúrgica. Mas se tivermos de avançar há que reunir a equipe e prepará-los para uma cirurgia de elevado risco, muitas vezes num doente muito mau. Há que ter produtos sanguíneos prontos antes de avançar. A colocação do doente em posição de litotomia é útil, quer para a possibilidade de uma endoscopia, quer para a realização rápida de uma anastomose mecânica. Antes de entrar no bloco, seria bom por o Gastroenterologista de sobreaviso.

Fluxograma baseado nas guidelines do Colégio Americano de Gastroenterologia (1998). Neste fluxograma acrescentaria e daria maior importância à AngioTC no quadro onde surgem a Angiografia e o Cintigrama. Conforme se encontra explicito no texto, a AngioTC é, actualmente, de grande importância na localização da hemorragia, sobretudo na hemorragia severa e nas situações com indicação cirúrgica.


Em Conclusão:
- HDB habitualmente pára espontaneamente
- Se não parar, manter tratamento de suporte, com paciente aquecido, fornecer UCE e suspender terapêutica que possa agravar a hemorragia
- Há que considerar os recursos locais: há endoscopia? TC? Angio?
- Restringir a cirurgia aos doentes com um diagnóstico preciso ou nos doentes em que o controlo da hemorragia falhou usando outras modalidades de tratamento








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