terça-feira, 5 de julho de 2016

Capítulo 8: Abdomen Agudo

O Abdómen Agudo é sempre um motivo de discussão acesa entre cirurgiões, sobretudo na presença de internos e, mais ainda, de jovens internos. Cada cirurgião "maduro" tem a sua opinião bem formada sobre este assunto. E todos acham que a sua definição é a correcta.

O primeiro clínico a preocupar-se com este tema terá sido Sir Zachary Cope, cirurgião Inglês que praticou medicina no inicio do século XX (1881-1974) e foi autor do mais conhecido livro sobre abdómen agudo: Cope's Early Diagnosis of the Acute Abdomen, que foi editado com várias versões desde 1921 até 1974, pelo próprio. Este trabalho permanece um texto standard e respeitado por todos cirurgiões gerais e continua a ter edições recentes, tendo a última sido publicada em 2010. Citações do trabalho original surgem sempre que se fala de AA.

By Speaight Ltd. ([1]) [CC BY 4.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0)], via Wikimedia Commons


As primeiras definições de AA estavam ligadas à necessidade de cirurgia urgente, habitualmente nas primeiras 24 horas. Numa época de escassos recursos diagnósticos, quer laboratoriais quer imagiológicos, as decisões cirúrgicas eram tomadas com base na clínica. Por isso, muitos doentes operados com base na presença de sinais de irritação peritoneal, não seriam operados hoje por conseguirmos identificar patologias que não tem indicação cirúrgica inicial, como, por exemplo, a pancreatite aguda. Portanto, a definição actual não pode ser baseada na existência de indicação operatória.

O facto é que conseguimos diagnosticar um AA sem recorrer a exames complementares de relevo. A maioria das vezes necessitamos apenas da nossa observação. Por esse motivo, alguns autores referem-se a AA sempre que há sinais clínicos sem um diagnóstico definido. Pessoalmente, acho que um diagnóstico de AA não deve depender da nossa capacidade em chegar ao um diagnóstico etiológico e, por isso, mesmo sabendo que o doente tem uma apendicite aguda, ele continua a ter um AA. 
Neste contexto, o conceito que melhor se enquadra é o que define AA como uma síndrome clinica, caracterizada por dor abdominal de instalação recente (habitualmente horas mas pode ter a duração de alguns dias), associado a sinais de irritação peritoneal e algum rebate sistémico (desde a febre até à sépsis).

O AA constitui a urgência cirúrgica mais frequente, estimando-se que mais de 50% dos doentes admitidos e operados pelo SU o sejam por AA. A mortalidade intra-hopsitalar desta entidade não é desprezível, podendo chegar aos 4%, mais elevada nos grupos etários mais velhos. Nos tempos actuais, uma das questões mais importantes a responder perante um AA é referente à necessidade de cirurgia. Não operar um doente que necessita é mau, mas operar um doente que não necessita não é melhor... os riscos são elevados, a morbilidade importante e a mortalidade não justificável. 

O AA constitui um espectro continuo de manifestações clinicas que vai desde o doente que se apresenta com uma dor abdominal ligeira, estado geral conservado, uma palpação dolorosa mas tolerável e ruídos peristálticos normais, até ao doente séptico, com dor abdominal intensa, "ventre em madeira" (clássico), distensão abdominal e ausência de ruídos. A Escola Médica de Coimbra apresentava uma classificação de AA (Ventre Agudo, Prof. Fernando José de Oliveira) muito particular: 
- AA flegmásico - onde predominam os sinais de irritação peritoneal (apendicite, colecistite, etc.)
- AA oclusivo - onde predominam os sinais de oclusão intestinal
- AA apopletiforme - onde predomina a dor (pancreatite aguda, isquémia mesentérica, etc.)
- AA hemorrágico - onde predominam sinais de hipovolémia (trauma, gravidez ectópica, etc.)

A localização da dor também nos pode orientar no diagnóstico etiológico, não sendo, no entanto, muito rigoroso:
- QSD: colecistite, perfuração ulcerosa, pancreatite, pneumonia...
- QSE: rotura esplénica, isquémia cardíaca...
- QID: apendicite, patologia ginecológica, Crohn...
- QIE: diverticulite, colite isquémica, patologia ginecológica...
- Difusa: oclusão intestinal, isquémia mesentérica...
Há nesta lista patologia não abdominal porque existe patologia extra-abdominal que pode ter uma apresentação clínica de AA. Sendo uma síndrome clinica, não podemos falar em falso AA, mas apenas em apresentações atípicas das doenças extra-abdominais.

A avaliação de um doente com AA, além da clínica, implica um estudo diagnóstico que inclui exames laboratoriais e de imagem. Genericamente, aos estudos laboratoriais mais gerais deverão acrescentar-se a Amilase e Lipase, o Teste de Gravidez, a enzimologia cardíaca por vezes o doseamento de algumas drogas. Na presença de sépsis ou instabilidade hemodinâmica a gasimetria é obrigatória. São imprescindíveis a radiografia do tórax e do abdómen. Muitos autores na actualidade exibem opiniões em oposição à realização da radiografia do abdómen argumentando a sua inutilidade. Não podendo argumentar em favor da sua utilidade do ponto de vista geral, penso que em situações pontuais a radiografia do abdómen pode ser importante na tomada de decisão quer cirúrgica, quer na persecução diagnóstica, razão pela qual continuo a inclui-lo no arsenal diagnóstico do AA. A ecografia abdominal é, hoje, uma mais valia em diversas situações clinicas que cursam com AA, podendo ser, mesmo, o único exame de imagem necessário para o diagnóstico. É exemplo a colecistite aguda. Não obstante, múltiplos outros exames servem o armamentário disponível ao estudo destes doentes (endoscopia, TC, angiografia, etc.). O objectivo principal do estudo diagnóstico visa tomar uma decisão de operar consistente e com indicação precisa. Porque pior do que não operar quando é preciso, é operar quando não é. E tudo tem peso, sobretudo perante um doente fragilizado, com uma doença grave a que pode acrescer a morbilidade ligada à idade e à patologia associada.

Portanto, são passos importantes no manuseamento de um doente com AA:
1. Alívio da dor
2. Hidratação (fluidos ev)
3. Descompressão gástrica (nem sempre mas quase)
4. Antibioterapia (peritonite...)
5. Monitorização (parâmetros, diurese, gases do sangue...)
6. Operar... se indicado. Se não, observar. Mas... se o doente não melhora com a terapêutica conservadora, talvez seja melhor operar...

Em conclusão:
- O AA é uma patologia cirúrgica muito frequente
- Os princípios do seu tratamento são inicialmente de suporte, equilíbrio e ressuscitação
- Os exames complementares são importantes para o diagnóstico mas a clinica é “o guia”
- O tratamento cirúrgico deve ser equacionado cuidadosamente caso a caso







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