domingo, 26 de junho de 2016

Capitulo 4: Controlo de danos

O Damage Control veio para ficar. De expressão de origem militar, enraizou-se no léxico médico e hoje é, aquilo a que podemos chamar, o estado da arte.
Originalmente, referia-se às manobras mínimas necessárias para manter em navegação um navio vitima de ataque, permitindo-lhe atingir o local onde pudesse ser reparado. Consiste, na essência, a um conjunto de manobras de salvamento incompleto.

A expressão foi adaptada para o universo médico com uma correspondência quase directa. No inicio dos anos 90 surgiu a expressão Damage Control Surgery, cuja adaptação é atribuida a Rotondo e Schwabb, provavelmente os primeiros autores a apresentarem o conceito numa publicação.

Rotondo MF, Schwab CW, McGonigal MD et al. 'Damage Control - an approach for improved survival in exsanguinating penetrating abdminal injury' J Trauma 1993;35:375-382

A constatação de que, uma grande parte dos doentes vitimas de trauma grave, sobretudo penetrante, não sobrevivia após uma reparação cirúrgica anatómica completa das suas lesões, levou a considerar a existência de outros factores envolvidos. A chamada tríada letal, já anteriormente definida por Kenneth Mattox, foi sendo progressivamente melhor entendida e assim como a necessidade da sua correcção precoce. O entendimento da necessidade de tratar para além do órgão, foi crucial para a sobrevivência dos doentes. A morte acontece no Universo microscópico da molécula e da célula. Para impedir esse acontecimento, ao qual não se tem acesso directo, era obrigatório agir rápido. Equilibrar a homeoestase de forma a evitar os desequilíbrios celulares responsáveis pela morte. A falência do ATP e dos processos de troca de energia celular.
O segredo consiste em levar o oxigénio até à célula. Desde o ar (ou a botija) até à célula, preferencialmente à célula cerebral... Se esse circuitos estiver assegurado, assegura-se a sobrevivência do doente. Se não for tarde demais.

A bomba de sódio e potássio é uma proteína da membrana e uma enzima fundamental para o bom funcionamento celular. É a principal responsável pelo gradiente de sódio e potássio existente entre os meios intra e extra celular, sendo este gradiente fundamental para a sobrevivência do organismo e da célula. A bomba contraria a tendência natural para o equilíbrio osmótico entre os dois lados de uma membrana semipermeável. A perda do suprimento do oxigénio leva ao consumo desmesurado de glicose para produzir, de forma pouco rentável, ATP, o combustível neste microuniverso. Em ambiente de stress, em que os mecanismos celulares trabalham para repor a normalidade, o ATP é gasto de forma rápida. Os produtos de degradação anaeróbia da glicose, o piruvato e o lactato, vão aumentando, perturbando ainda mais o equilíbrio ténue da célula. Neste ambiente, se nada for feito que contrarie a tendência, a bomba de sódio e potássio vai deixar de ter ATP para bombear continuamente o sódio para fora e o potássio para dentro da célula. Quando isso acontecer, e o ambiente intra-celular ficar saturado de sódio, a água, que entra livremente na célula, vai causar edema, disfunção dos sistemas celulares e, por fim, morte... O órgão, anatomicamente, vai permanecer com aspecto normal ainda durante algumas horas. Porém, está morto. Toda e qualquer reparação efectuada sobre ele está condenada ao fracasso, e o doente à morte.
Não temos forma fácil de, clinicamente, monitorizar estes acontecimentos. "Macroscopicamente" podemos vigiar os sinais vitais, como a frequência cardíaca, a tensão arterial e a saturação periférica ou "microscopicamente" parâmetros como o pH, o lactato e o excesso de bases. Porém, todos eles são apenas representações grosseiras do que realmente está a acontecer no ambiente celular. Infelizmente, são os melhores que possuímos. Ao longo das últimas décadas tem sido procurado o melhor dos "resuscitation endpoints" sem sucesso. Mas vamos continuar a procurar...
Recentemente surgiram alguns estudos que favorecem a utilização da saturação venosa central, ou seja, a saturação em oxigénio da hemoglobina que deu a volta a todo o organismo, reflectindo a capacidade de extracção e de utilização de oxigénio pela célula, dependente do total de oxigénio que chega à célula (hipóxia, choque) e da capacidade de utilização pela célula (sépsis, morte celular).

O conceito de Controlo de Dano resulta, assim, numa solução empírica e grosseira para um problema que acontece ao nível molecular. Na impossibilidade de resolver a questão à escala em que acontece, tenta-se, macroscopicamente, antecipar e evitar que aconteçam eventos irreversíveis. Por esse motivo, e por não conhecermos, de modo individual, o timing desses eventos, a principal variável deste conceito é o tempo. Tudo neste ambiente é uma corrida contra o tempo...

Inicialmente, a cirurgia de controlo de dano foi aplicada ao abdómen e ao trauma penetrante grave. A pouco e pouco os conceitos foram-se expandindo a outras formas de trauma e a outras localizações. Hoje, o conceito já se encontra difundido a situações de sépsis grave, abdominal e outras. O conceito engloba não só as medidas cirúrgicas, mas também a fase de ressuscitação, podendo ser utilizados meios extraordinários de suporte. É o caso da ressuscitação de controlo de danos. O seu principio é baseado na substituição antes da falta. Isto significa que se administra ao doente o que ele irá previsivelmente necessitar. No caso do trauma com hemorragia grave, administra-se concentrado de eritrócitos, que já estão em falta, e factores de coagulação, que irão faltar dentro de pouco tempo devido à coagulopatia induzida pelo trauma, numa tentativa de evitar, ou pelo menos atenuar, a sua gravidade.

O controlo de danos é, no fundo, uma manobra inteligente não só de tratamento mas de prevenção. Antecipar a catástrofe e minimizar os danos sofridos, tendo em conta que o próprio acto de tratar pode induzir lesões e complicações.

É clássica a história do doente que sofreu múltiplos danos e que, operado por um cirurgião sénior, esteve no Bloco Operatório durante horas e foi submetido a uma gastrectomia, colectomia, esplenectomia ... e respectivas reconstruções. Mas morreu. Este doente, em filosofia de controlo de dano era gastrectomizado, colectomizado, esplenectomizado, sem reconstruções. Demorava, no máximo, 90 minutos, ficava com o abdómen aberto. Teria que ser re-operado nos dias seguintes, uma, duas ou mais vezes, mas sobrevivia...

E para uma próxima, falamos de Síndrome de Compartimento Abdominal...


Bibliografia recomendada:
Asensio, J. and Trunkey, D. (2008). Current therapy of trauma and surgical critical care. Philadelphia: Mosby/Elsevier.
Boffard, K. (2011). Manual of definitive surgical trauma care. London: Hodder Arnold.
Hirshberg, A. and Mattox, K. (2005). Top knife. Castle Hill Barns, Shrewsbury, UK: Tfm Pub.
Schein, M. and Marshall, J. (2003). Source control. Berlin: Springer.

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