No disease of the human body, belonging to the province of the surgeon, requires in its treatment a better combination of accurate anatomical knowledge, with surgical skill, than hernia in all its variety.
Astley Paston Cooper, 1768-1841
Na actualidade, a hérnia incisional representa um problema de saúde importante, complicando entre 11 a 23% de todas as laparotomias. Pior ainda, é o facto de que muitas delas irão recidivar. Entre 25 a 54% das hérnias reparadas sem prótese irão recidivar no prazo de um ano, e até 32% se forem reparadas com algum tipo de prótese.
A história natural da hérnia incisional tem também sofrido modificações ao longo do tempo. A emergência de técnicas cirúrgicas baseadas na cirurgia de controlo de danos, levou ao aparecimento de doentes em que o encerramento primário é impossível, originando um conjunto hérnias ventrais programadas que representam um sério problema cirúrgico.
Apesar do aparecimento de redes e próteses cada vez maiores e mais seguras, permitindo a reparação por via laparoscópica de grandes defeitos, alguns autores sempre entenderam que os grandes defeitos da parede abdominal necessitam de uma reparação mais fisiológica. Nesse sentido, a reparação de Rives-Stoppa terá sido a primeira a surgir, nos anos 1970, aproveitando o espaço retromuscular, posterior ao grande recto abdominal, para reforçar com prótese a reparação da linha média. Em 1990, Oscar Ramirez descreveu a separação anterior de componentes, aliando a secção do grande obliquo ao longo da linha semilunar à separação e abertura do espaço entre o grande e o pequeno obliquo. O conceito baseava-se na necessidade de produzir um avanço mio-fascial com aproximação das estruturas à linha média, permitindo uma reparação funcional da parede abdominal. Porém, a técnica de Rives-Stoppa não permite a sua aplicação quando o defeito é muito grande e a técnica de Ramirez obriga a um descolamento cutâneo extenso, com secção dos vasos nutritivos, produzindo, com frequência, a necrose do retalho.
Laparoplastia de Rives-Stoppa Imagem: https://es.slideshare.net/ivojvodic2000/cirugia-de-eventraciones-gigantes |
Separação anterior de componentes segundo Ramirez Imagem: http://drkevinbrenner.com/uncategorized/reconstruction-massive-abdominal-hernias/ |
Como sabemos, as hérnias incisionais apresentam, frequentemente, defeitos volumosos ou múltiplos. O "bulging" que produzem na parede abdominal pode ser tão importante que, além do defeito funcional, é um estorvo fisico para os doentes, obrigando-os a usar algum tipo de contenção. A colocação de uma prótese sub-peritoneal, como se faz em laparoscopia, pode evitar o movimento visceral e o encarceramento, mas o defeito funcional e fisico permanecem. Não me parece que seja uma solução adequada, sobretudo para defeitos de grande volume. É necessária uma reparação da linha branca... Em 2004 a American Hernia Society considerou as técnicas de avanço mio-fascial como gold standard no tratamento de hérnias incisionais por via aberta.
Nos anos 2010 começou a surgir uma nova técnica, utilizada de forma um pouco inconsistente por vários autores, mas definida e publicada por Michael Rosen em 2012. Trata-se da separação posterior de componentes. A Separação Posterior de Componentes vem afirmar-se como um método alternativo para reparação de grandes defeitos da parede abdominal, podendo ser usada em quase todos os casos. Preserva a inervação do músculo grande recto e a vascularização muscular e da pele e tecido celular subcutâneo, reconstruindo a linha branca, contribuindo assim quer para uma reparação funcional, quer para redução das complicações ligadas à necrose do retalho.
A técnica pode resumir-se nos seguintes passos:
1. Adesiólise: Após a abertura ampla da cavidade abdominal, sem remoção de pele ou de saco (irão perceber porquê), as aderências entre as ansas e a parede devem ser cuidadosamente desfeitas. Além de permitir uma melhor aproximação à linha média do saco visceral, evita a lesão das ansas durante o descolamento do peritoneu/fascia transversalis do músculo transverso do abdomen.
2. Abertura da bainha posterior do recto: Esta manobra é iniciada, em regra, junto ao umbigo e cerca de 5 mm dentro e posterior ao bordo do defeito herniário. A secção levará à exposição do bordo medial do músculo grande recto do abdómen e será alargada em sentido cranial e caudal.
3. Desenvolvimento de plano retromuscular: Descolamento do músculo grande recto de abdomen da aponevrose da bainha posterior. Esta dissecção deve ser feita com o cuidado para preservação do vasos epigástricos que percorrem o músculo longitudinalmente e o rolo nervoso que penetra no grande recto do abdomen atravessando a bainha posterior. A preservação destas estruturas é fundamental para os bons resultados da técnica.
4. Abertura da bainha posterior do grande recto e secção do músculo transverso do abdómen: Iniciando na sua extremidade superior, onde o músculo transverso se estende mais para dentro, a bainha posterior é seccionada, acedendo ao músculo transverso que é seccionado em conjunto. Nesta manobra há que ter cuidado com os componentes vasculo-nervosos, pelo que deve efectuar-se ligeiramente medial à linha semilunar, e até à fascia endo-abdominal, que não deve ultrapassar-se. Deve colocar-se o plano de dissecção posterior ao músculo transverso e entre este e a fascia endo-abdominal.
Abertura da bainha posterior do grande recto abdominal Imagem: Atlas of Abdominal Wall Reconstruction. Rosen MJ ed. Philadelphia, PA; Elsevier; 2011. |
5. Desenvolvimento do espaço entre o transverso do abdómen e a fascia endo-abdominal bilateralmente: Este descolamento é executado por dissecção romba. Trata-se de um espaço avascular que pode ser estendido, lateralmente até ao quadrado dos lombos, para acomodar a prótese. Qualquer orifício no peritoneu deve ser reparado. Se não for possível o seu encerramento primário, pode usar-se o epíploon ou um pedaço de rede absorvível (Vycril).
6. Desenvolvimento do espaço sub-xifoideu e retro-púbico: Continuando o descolamento a nível superior e inferior, abrem-se os espaços de Retzius, em baixo, expondo o ligamento de Cooper, e o apêndice xifóide, em cima. É importante que este espaço seja amplo para acomodar a prótese, que deverá exceder o defeito da hérnia. A distância de sobreposição da prótese não é consensual, mas o valor mais referido é de 8 a 10 cm.
7. Encerramento na linha média do "envelope" visceral: O "envelope" constituído pela fascia endo-abdominal e peritoneu, reforçado na linha média pela bainha posterior dos rectos, é aproximada na linha média e suturada. Raras vezes não será possível encerrar esse defeito. Se assim for, poderão usar-se restos do saco herniário para o efeito.
8. Colocação da rede no espaço pré-peritoneal: A rede deve ser colocada neste espaço dissecado, com as medidas ajustadas ao tamanho do defeito. A fixação deverá ser efectuada com fio não absorvível, com 2 pontos a nível do ligamento de Cooper (um em cada lado), dois pontos sub-xifoideus e 4 pontos de cada lado, trans-aponevróticos. Este últimos poderão necessitar pequenas incisões cutâneas para poder dar os nós, após passagem com agulha de Reverdin através da parede lateral músculo-aponevrótica.
9. Encerramento da linha média: O bordo interno da bainha dos rectos é aproximada com fio não absorvível após a colocação de drenagem aspirativa na loca onde repousa a prótese e sobre esta. Habitualmente utilizam-se dois drenos com aspiração activa, um em cada lado. Por vezes, a aproximação da linha média não é possível, pelo que o defeito terá de ser completado por prótese, também. A escolha recai sobre uma prótese de polipropileno simples, que deverá ser coberta com tecido celular subcutâneo durante o encerramento da pele. Só agora iremos verificar se é necessário remover pele e qual a quantidade a remover para não ficar "sem pano".
Aconselho a não operar doentes obesos ou fumadores. Os resultados são maus para estes doentes, com todas as técnicas. Assim, um doente com IMC superior a 40 deve ser aconselhado a emagrecer. Um doente fumador deveria para de fumar 4 semanas antes de ser operado. É evidente que estes são objectivos algo irreais, mas operar um doente com uma grande hérnia incisional que mantém hábitos tabágicos ou com IMC elevado é arriscar não só uma recorrência, mas complicações pós-operatórias graves.
A prótese a usar deve ser não reabsorvível. Uma vez que é colocado num espaço que não estará em contacto com vísceras, a utilização de uma malha de polipropileno simples parece-me adequada. Na presença de infecção ou contaminação, como é o caso em que se tem de manipular estomias, a utilização de uma prótese biológica pode estar indicada. Ultimamente tenho utilizado uma prótese auto-colante, sem fixação (Adhesix Bard). Os resultados são bons, aparentemente, e permite reduzir um pouco o tempo operatório, que anda à volta das 4 horas... em média.
Uma nota sobre o período pós-operatório. A analgesia é de vital importância e a utilização de epidural é aconselhada de forma sistemática. O início precoce, e mesmo pré-operatório, de cinesiterapia respiratória é crucial. Esta técnica cirúrgica cria um espartilho que pode perturbar a função respiratória e este facto deve ser previsto. A elevação da pressão de pico inspiratório durante o encerramento da aponevrose pode indicar a necessidade de permanência do doente sob ventilação assistida e ser desmamado com mais tempo, em UCIP, no decurso de 24 a 48 horas.
Os resultados desta técnica são bons. Segundo os estudos do próprios Michael Rosen, a taxa de recidiva anda à volta dos 5%. São resultados muito encorajadores, mas o que sobressai mais é a redução da taxa de infecções pós-cirúrgicas relativamente às outras técnicas de avanço mio-fascial, particularmente à técnica de Ramirez. Esta última, em vários estudos, reporta-se uma taxa de infecção entre 26 e 42%, condicionada pela isquémia dos retalhos cutâneos. Num dos seus primeiros trabalhos, após 42 hernioplastias, Michael Rosen verificou uma taxa de 7% de infecções da ferida operatória grave. Num estudo comparativo entre a técnica de separação anterior e a posterior de componentes, o mesmo autor reporta taxas de 48,2% e 25,5% de complicações da ferida operatória, respectivamente.
Em conclusão: trata-se de situações complexas que necessitam, para a sua abordagem, uma técnica que seja inteligente e resolva os problemas do doente. Isso significa que, mais do que tapar o orifício, é preciso oferecer ao doente uma reparação que restaure a funcionalidade da parede abdominal. Isso só é possível através das técnicas de aproximação mio-fascial com reconstrução da linha média, reforçada por uma prótese. No caso da Separação Posterior de Componentes, a prótese é colocada num espaço virtual, pré-peritoneal, longe do contacto com as vísceras e longe da superfície.
Are you sure you are the best person for the job?
Francis D. Moore
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